domingo, maio 31, 2009

dias de sol

“Escrevo-me para me distrair de viver”. Vivo para me esquecer de pensar. Os jornais espalhados na mesa por entre garrafas de água e o prato do bolo de chocolate, conversas cúmplices, sorrisos e o amparo de sempre sob um sol abrasador no meio da cidade. Imperais de fim de tarde, descobertas boas, mais conversa, mais risos. Jantar em versão ceia a acabar fora de horas. O cheiro das noites de Verão a subir do Tejo. Música no sítio do costume, brincadeiras infantis, risos. Deitar muito tarde, sem vontade de cair na cama. Os dias e as noites querem-se cheios, fora de casa, rodeada de gente. Joga-se à bola, tiram-se fotografias, fazem-se bolas de sabão, come-se bolo de aniversário e cerejas até ficar enjoada. Recebem-se mimos e confirma-se que é preciso muito pouco para ser feliz. Só o ‘Segundo’ da Maria Rita continua a tocar em repeat.

sexta-feira, maio 29, 2009

alentejo em diferido

Queria os 40º graus do Alentejo, mas em passo lento. A vida em formato ‘leve-leve’. Queria campos de girassóis para me perder, não para os ver da janela do carro num relance. O dia começou demasiado cedo, serão 700 quilómetros bem medidos que vou sentir em todos os músculos das costas, das pernas, dos braços. Queria vinhas a perder de vista, a terra a gretar sob o céu escaldante, para me sentar à sombra de uma azinheira, comer uvas frescas e ouvir o chilrear dos pássaros. Acelero, prego a fundo o tempo inteiro, o conta-quilómetros a chegar aos 180 e eu a ter flashes despropositados, imagens felizes que saltam da caixinha verde alface, a atenção a fugir da estrada, a cabeça a ir ao tapete. Queria os campos queimados do sol para me deitar sobre um céu azul muito forte que obriga a fechar os olhos. Vou de um lado para o outro, mais de 100 quilómetros de cada vez, engatar a terceira, a quarta, a quinta, o carro que não dá mais. Queria Beja para me perder nas ruelas, andar devagar, parar em cada esquina, fotografar, ficar apenas a olhar, sentada numa esplanada de livro na mão. O dia é demasiado longo. É noite quando chego a Évora, no calendário é outro dia quando regresso a Lisboa. O cansaço convertido em lágrimas. Queria o Alentejo para ser feliz, não para me moer de pancada.

quinta-feira, maio 28, 2009

Paris

15º em Paris e previsão de chuva para amanhã. Deixei o calor em Lisboa e preparo-me para conhecer, a fundo, a UNESCO. Há oportunidades que vale a pena aproveitar.

quarta-feira, maio 27, 2009

hábitos que não se devem perder

Ainda se escrevem cartas de amor.

gostos iii

Gosto do meu bairro, do lilás dos jacarandás no azul do céu quando desço a calçada, do perfume que enche o largo e a alma, das esplanadas cheias de gente, gosto de comer cuscus no Fábulas, do sumo de morango, gosto da companhia, do riso e da cumplicidade. Hoje é um dia bom. Gosto de dias bons.

Pensamento

Estarei eu no mesmo ponto da vida daqui a um ano?

terça-feira, maio 26, 2009

Gostar [ou não] de terça-feiras

“A Carrie tem uma escrita à Hemingway.”

de alma e coração cheios

[Photo: Brandi Ediss]

segunda-feira, maio 25, 2009

Próxima paragem depois da próxima

Próxima paragem

constatação

Há pessoas que não aprendem que há coisas que não se dizem. Fazem-se.

Alentejo

Às vezes esqueço-me de como Portugal tem lugares belos. Conduzi por estradas rectas, quilómetros a fio, rodeada de paisagens espectaculares e inspiradoras. Às vezes chovia torrencialmente, e cheirava bem: a terra molhada, um odor irrestível que dava vontade de saltar para fora do carro e correr, de braços abertos. Não o fiz. Apenas sorri, para mim, e disse muitas vezes, para os que me acompanhavam "Adoro este cheiro". Passámos por cegonhas nos ninhos e outras que voavam no alto. Se elas vêm cá passar férias, porque não ficamos nós? Ainda espero que um dia, alguma, me traga qualquer coisa no bico. Como nos livros infantis, pendurado numa fraldinha. Branca. As ovelhas e as vacas completam a paisagem de uma alimentação disponível para todos. Coelhos atravessam a estrada à minha frente e múltiplas aves, de várias formas, voam baixinho sem medo de atropelos. Também um rato enorme passa à minha frente. O céu está, ora azul, ora cinza. Muito escuro, à espera que (eu) passe para me deitar água em cima. As nuvens parecem animadas, de tão fofas. Imagino-me a saltar como um boneco infantil, em cima delas. Vejo raios de sol que as trespassam sem medo. Sinto que Deus existe. Há amarelo nas flores e verde no resto, algumas papoilas e brincos rosa. À beira da estrada, como se esperassem boleia. Levo-as comigo, na alma, e deixo-as em terra de ninguém. Agradecem e seguem viagem. Fico-me pela natureza. Omito aqui as plumas e as migas, o ensopado de lebre (não comi) e a sopa de cação. Também o pão, as azeitonas, o tempero com sabor a coentros e alho. Gosto de cá estar. Prometo regressar em breve.

Estarei no sítio certo?

Ontem, domingo, pela manhã, numa Taberna em pleno Alentejo:

Eu - Bom dia, tem leite?

Taberneiro - Light? Tabaco?

Desfeita a confusão, o velhote foi ao fundo da loja, demorou uns 5 minutos, e trouxe um bule em inox com leite morno. Misturei-lhe café e quase vomitei quando percebi que aquela não era a minha temperatura ideal. Sou esquisita, nestas coisas das meias-de-leite, bem sei. Mas bebi tudo, por vergonha e agradecimento. À minha volta, homens da terra bebiam minis e vinho branco a copo. E comiam queijo alentejano. Bem-Haja a todos, por serem portugueses!

sábado, maio 23, 2009

estados d'alma

"so you bite on a towel
hope it won't hurt too bad"

[versos que hoje não me saem da cabeça.]

aniversário

O Mais Cidade faz hoje quatro anos. Por isso parabéns para nós. São quatro anos de alguns bons posts, muitos a dizer coisa nenhuma. Quatro anos de calendário sentimental. O Hobbes perguntava-me outro dia, a propósito de outro aniversário, se tenho todas as datas apontadas numa agenda ou se simplesmente me lembro de tudo. Tenho uma memória imensa para coisas inúteis, não era o caso do tal aniversário, mas muita coisa dos últimos quatro anos está aqui escrita, lembro-me de praticamente todos os posts que escrevi, alguns a sorrir, outros a chorar, muitos com raiva, outros com a doçura dos momentos bons. Este blog não sou eu. Mas é uma parte importante de mim.

Parabéns à Samantha que nunca me abandonou. E também à Charlotte e à Miranda que de vez em quando se lembram de passar por cá.

E obrigada a todos os que continuam a ler, a elogiar, a criticar. Agradecida.

sexta-feira, maio 22, 2009

telex

numa estrada sinuosa, a meio da serra. por detrás de mais uma curva, numa estrada ladeada de eucaliptos. dizem que se vende esperança. ainda pensei em parar. a comitiva ia demasiado depressa. talvez para a próxima.

quinta-feira, maio 21, 2009

Gostos ii ou adenda ao post anterior

Hoje aterrei duas vezes na Portela. Uma delas sem sair de Madrid, com um motor parado depois de se ter incendiado e com nevoeiro intenso.

gostos

Gaja que é gaja gosta de ir às compras, gosta de ter uma colecção de cremes, muitos acessórios, várias malas, uma colecção de perfumes, tem uma colecção de gloss e de sombras, gosta de discutir as últimas tendências da moda, gosta de sandálias de 7 centímetros, colecciona sapatos, é capaz de passar várias horas à conversa a discutir futilidades, mas convicta de que daquela conversa depende o futuro da humanidade. Gaja que é gaja gosta de portos, de paisagens de contentores, de fábricas de automóveis e gosta de aviões. Gosta de andar no meio de hangares, ouvir mangas a ser disparadas em 3,5 segundos com um ruído ensurdecedor, gosta de andar dentro de aviões descascados, gosta do cheiro de um hangar de pintura, de subir a andaimes, de espreitar para dentro da carcaça do avião, de ouvir falar de motores e componentes, de ver contentores de oxigénio desmontados, sabe que um A340-300 leva mais pessoas que o A320, mas menos que o A340-600.

quarta-feira, maio 20, 2009

Este Leão-Marinho beijou-me...

A room with a view

[Boulevard Gouvion Saint-Cyr Paris]

Paris

Não sabia que tinha saudades de Paris, não sabia que me faltavam as avenidas largas, os edifícios monumentais, os parques, os dourados, logo eu que odeio dourado, da ponte de Alxandre III, o rio que corta a cidade a meio, o romantismo dos prédios, as ruas a fervilhar de gente mesmo que os relógios se aproximem perigosamente da meia-noite, as floristas em cada esquina, os casais de namorados despudorados, que fazem desta a cidade do Amor. Não sabia que tinha saudades de Paris e 18 horas são manifestamente pouco para as matar.

['Room with a view' só amanhã, em diferido, o 'magalhães' não deixa descarregar as fotos]

terça-feira, maio 19, 2009

vontades ii


Ando há uma semana com vontade de acordar numa cama que não seja a minha. Amanhã acordo aqui.

segunda-feira, maio 18, 2009

dos dias bons ii

Começo o dia virada do avesso, despertador desligado a soco, só mais dez minutos, até que toca de novo e de novo o desligo. Passo uma hora nisto. Tempo mais do suficiente para imaginar todas as desculpas possíveis, algumas plausíveis outras nem por isso, hoje não é dia para sair da cama. Rendo-me ao inevitável. Não sei fazer gazeta. Estou intragável, mas meia hora debaixo de água ajuda a limpar a alma e as ideias. A vida não é má. Começo o dia com sorrisos, cumplicidades, pastéis de Belém cobertos de açúcar e o dobro da canela para adoçar as quase lágrimas. És sempre tu que aqui estás, para o que der e vier, nos bons, nos maus e nos piores momentos. Rimos muito. Começo o dia num jardim no meio da cidade, relva brilhante, acabada de cortar, que convida a tirar os sapatos, encostar ao tronco de uma árvore e não fazer, não pensar, não reagir. Começo o dia a olhar para um homem com sorriso e corpo de Adónis. A subtileza nunca foi o meu forte.

sábado, maio 16, 2009

dos dias bons

A C. insiste que a vida se resolve sozinha, repete-mo todos os dias, enquanto descemos a feira para voltar a subir logo a seguir, enquanto nos enchemos de sushi, enquanto trocamos mensagens compulsivas como adolescentes, enquanto bebemos um capuccino junto a uma janela de onde se vê a trovoada a rebentar no céu da cidade, quando lhe ligo a perguntar como está. Nos dias bons acho que a C. tem razão, que a vida se endireita, se apruma como quem alisa os vincos de uma peça de roupa, a vida alinha-se que nem livros numa prateleira ordenados por ordem alfabética e géneros, compõe-se como notas de música para uma peça de violino. Nos dias bons, em que o trabalho se multiplica, em que se escrevem-apagam-escrevem-apagam-escrevem caracteres a um ritmo alucinante, em que se enchem páginas de coisas fúteis transformadas em ‘pérolas’ a bem da nação, nos dias bons em que há sempre uma resposta do outro lado, em que o sol sobe a calçada e o cheiro dos jacarandás enche o Carmo, em que se trocam confidências e se discutem as vantagens e desvantagens do preservativo feminino, em que a vida não acaba à saída do pasquim e em que o melhor do dia é ainda uma promessa... e nos dias que se seguem aos dias bons, ao acordar com um cheiro que não está ali, que é apenas uma memória, é como se acordasse de um sono longo, é como se me abanassem para eu perceber, estremunhada, que o que está errado é o tempo que levo a consumir-me com o que não está nas minhas mãos. Nos dias bons penso que a C. tem razão. Que a vida se resolve sozinha.

quarta-feira, maio 13, 2009

Post-it

Não atravessar avenidas largas a correr, quando o sinal já está encarnado para os peões e o verde já caiu para os carros do outro lado do cruzamento. E, de preferência, se não for pedir muito, não deixar cair o telemóvel bem a meio da dita avenida quando os carros já estão em andamento. Ah! e não parar para apanhar o telemóvel, mesmo que se esteja à espera daquele telefonema que pode mudar a nossa vida. É tudo.

terça-feira, maio 12, 2009

1808

Laurentino falou-me do Brasil e de como a Corte portuguesa lá chegou há 200 anos. Perguntei se José Sócrates deveria agora fazer o mesmo que D. João VI: fugir. Riu-se. Terá tido medo de dizer que sim, que o Primeiro-Ministro devia fugir do País que há muito corre contra ele. A Rainha louca já não é Maria Pia; e o príncipe medroso será um ministro qualquer. Só a perversa Carlota Joaquina continua por aí. Quem tiver ouvidos, que oiça...

quando a vida se transforma numa BD ii

O Calvin vai perder o seu Hobbes. O facto, que se concretizará dentro de pouco tempo, não foi falado, talvez nunca o seja, mas um e outro sabem que é inevitável. Não será a primeira vez, mas esta amizade, que é tudo menos imaginada – sim, sei que o Hobbes não é um peluche, é um tigre – sobreviveu a piores vicissitudes. Mais um arranhão pode fazer mossa, deixar cicatriz, mas são essas as marcas que os ajudarão a contar a história mais bonita, o mito urbano que é só deles.

posts em diferido

Acordo estremunhada a meio da noite, sonho ou pesadelo?, a ausência, um vazio de alma preenchido por bolachas de gengibre. Os pés descalços no chão frio, o vento, a chuva lá fora, a ausência. Bolachas de gengibre e um cigarro meio fumado. Volto para a cama de olhos fechados, aos tropeções, adormeço em dois tempos.

[Para o R. que tinha saudades dos posts à Carrie]

bela vista

As melhores, infelizmente as piores também, coisas da minha vida tendem a acontecer sem aviso. Como hoje. Um presente em forma de trabalho. Sem aviso, o que me obrigou a vir a casa trocar de sapatos. Ninguém faz reportagem, ainda por cima correndo o risco de ter de fugir à polícia ou a um bando de delinquentes armados de cocktail molotovs em cima de uns Fly de sete centímetros. Foi esse o presente. A bênção de voltar ao mundo real, longe dos meus gestores xpto, no meio de gente de carne e osso, com muitas histórias para contar.

Escolhi uma história e parti daí para todas as outras. Escolhi uma história com vista sobre Tróia, a partir de uma janela com grades, num café minúsculo, quatro mesas meio desconjuntadas, um televisor a preto e branco, sem som e com a imagem cheia de grão. A mulher que me atende chama-se Maria Baião, vou sabê-lo mais tarde quando perceber que desta vez a cara não se vai fechar, que haverá conversa para durar enquanto ali estiver. Não foi sequer preciso dizer ao que vou, mesmo que tenha entrado a pedir uma água, e mais um café, se faz favor, qualquer coisa para não ser de novo corrida sem direito a bom dia. Fala-se pouco na Bela Vista por estes dias, e quando se fala é a medo, num sussurro, e pouco ou nada se diz.

O café Pôr-do-Sol fica perdido no fim do bairro Azul e a cara marcada de Maria não deixa dúvidas que esta terá pouco tempo, e principalmente paciência, para se deixar encantar por tais poesias. Maria desfia o rosário dos dias naquele bairro social, mostra as fotografias antigas, do tempo em que as prateleiras estavam cheias, de quando os fregueses eram como amigos, toda a gente se conhece no bairro, somos todos tão unidos, somos uma família, vou ouvir mais do que uma vez. E logo a ela que leva duas décadas da Boa Vista, logo ela que nunca recusou uma ajudinha, que sempre vendeu fiado, que guarda em casa o livro das dívidas, páginas e páginas preenchidas com letras e números infantis de quem deixou a escola muito cedo. A mesma letra que usou para escrever o pedido de ajuda ao Presidente da República, à presidente da Junta, ela que só quer um aconchego para se manter à tona, para garantir um fundo de maneio que lhe permita voltar a encher as prateleiras como nos dias bons. A mesma letra redonda e infantil com que preenche as queixas contra desconhecidos, sempre contra desconhecidos, logo ela que tão bem lhes conhece a cara, que tantas vezes os atende logo no dia a seguir a mais um assalto. Maria desfia as dores da vida do bairro a par das suas próprias dores, contando como a polícia lhe entrou pela porta adentro, como lhe levou o ouro, a máquina fotográfica, o computador, as munições de uma arma calibre seis ponto qualquer coisa. Ela que não sabe porque foram entrar lá em casa, tudo o que tem ganhou com o próprio suor, com o trabalho de uma vida, logo ela e o marido, doente dos nervos, que não saem da Boa Vista porque só os negros aceitariam comprar o café e ela sabe que não são gente de ganhar a vinha honestamente, que aquilo só podia meter droga e ela com essas coisas não quer nada, o meu marido é um homem decente, não aceita essas coisas, repete, enquanto as lágrimas caem despudoradas pela cara a baixo por entre olhares recriminadores ao marido. Lê-se ali que a culpa é toda dele, por ela há muito que se tinha feito à vida, ela que queria ser cabeleira, que nunca quis fazer vida de balcão, cujos sonhos não se escreviam com chávenas de café lascadas, e açúcar servido de pacotes de quilo para dentro de taças a servir de açucareiro, sonhos que não se escreviam com caixas desabitadas para enfeitar as prateleiras, nem grades de cerveja vazias, sem uma única garrafa selada para contar a história. Fico ali muito tempo, sem olhar para o relógio, sem a certeza de encontrar outra história como aquela. A história de uma mulher sem medo, porque quem já perdeu tudo, quem diz e repete que já pensou no suicídio, não teme pelos bens materiais e ao marido pouco amor lhe tem, são assim as vidas que se vivem contrariadas, sem afectos, apenas por convenção, por falta de alternativa.

Volto aos pátios do bairro azul, uma fila de casas de cada lado, as paredes cobertas de grafittis, as janelas partidas, a roupa estendida. Há bancos no centro do pátio, uma árvore aqui, outra ali. Volto às ruas onde desfilam os polícias, passo acelerado, semblante carregado, corpos armadilhados de coletes à prova de bala. Volto às ruas quase despidas de gente, onde se desperta aos poucos muito depois do meio-dia. No café da Júlia, no meio do bairro Rosa, do outro lado da avenida, vou encontrar o Manuel, cabo-verdiano de sorriso fácil, de voz cantada, sem alegrias que acompanhem o linguajar das ilhas. Manuel está com dois mais velhos, os dois com menos de 60 anos, os dois reformados, os dois sem meios de subsistência, pelo menos que se confessem. O cabo-verdiano atrapalha-se no discurso, fala das obras, das fábricas, diz que agora está a estudar, desabafa que está desempregado. E nada lhe vale, no centro de emprego só arranjam trabalho a quem recebe o subsídio, um luxo que perdeu há muito. Diz que vive de biscates, quando aparecem, e lá vem o discurso da crise, que agora não há trabalho, mas que sempre se arranja alguma coisa. Deixo-os a queimar a tarde ao sol, deixo-os para entrar no café da Júlia onde se joga as cartas sem preconceitos raciais. Na mesma mesa, brancos, ciganos, negros. No bairro somos todos muito unidos, somos todos uma família, e ninguém fala, porque não se faz queixinhas, não se diz mal da família, pelo menos pela frente.

Ninguém dá a cara, ninguém diz o nome, esta gente não existe, não entra nas estatísticas, o bairro da Bela Vista parou em 2006 com uma taxa de desemprego muito alta, com um abandono escolar obsceno, mas ninguém diz que não vai à escola. Nem a cigana de 15 anos que embala nos braços o filho de dois meses da irmã pouco mais velha, que faltou estes dias às aulas por causa da confusão, por medo, medo do que não se vê pelo menos à luz do dia. O Manuel já avisou, está tudo calmo agora, porque eles estão a preparar-se para logo à noite. Nada farão se chover, foi isso que aconteceu no Domingo, já mo tinham dito à porta do centro social, cigarros acesos para acompanhar a conversa, criar empatia com a auxiliar de educação que gasta os últimos minutos da hora de almoço a olhar a carrinha do corpo de intervenção parada do outro lado da rua. Ela que foi a primeira miúda a ficar grávida no bairro, nunca ninguém tinha sido mãe tão cedo, ela com 15 anos a andar na boca do mundo, um mundo que se reduz a três bairros feitos de cor que o tempo esbateu. A empatia não chega para que a Becas diga o nome à jornalista, um nome ouvido no meio da conversa, a conversa que dura para além dos cigarros, onde há queixas contra a polícia, os homens de azul que dois dias antes obrigaram toda a gente do bairro a deitar-se no chão, até a Fátima, grávida de fim de tempo, se já se viu uma coisa destas, eles que façam o que têm a fazer, mas que perguntem primeiro, que tenham tento no cassetete, porque o bairro tem gente boa, não é só marginais, as pessoas trabalham, temos cá de tudo, enfermeiros, polícias, fisioterapeutas, a culpa é dos jornalistas, eles é que levam estas coisas para a televisão, só mostram o que querem, olhe o coitado do Jorge, a tareia que apanhou, o desgraçado que só foi a casa da mãe, buscar a marmita, e eu levei lá ontem a televisão e julga que mostraram alguma coisa?

O dia vai passando na Bela Vista, as ruas continuam vazias, mas o café da Júlia, no bairro Rosa, está cheio, prepara-se o fogareiro, vão assar-se febras para o lanche. Mais acima, no bairro Amarelo, os polícias continuam sitiados à porta da esquadra, dois carros do corpo de intervenção, muitos polícias armados até aos dentes, carros de giro atravessados no meio da rua cortada ao trânsito. As pessoas amontoam-se nas varandas dos prédios em frente, são boas imagens para os ‘bonecos’ que sairão impressas nas folhas salmão. No ar uma espécie de burburinho surdo, um presságio do que está para vir, uma tensão latente que não se explica, mas que se sente na pele.

segunda-feira, maio 11, 2009

Momento do Dia

Entrevista a Estrela Canvas, empregada e amiga de Amália Rodrigues. Aos 18 anos partiu de Luanda e cruzou continentes para conhecer Amália. Telefonou várias vezes para casa da fadista e tinha sempre a mesma resposta: "A Dona Amália foi ao dentista". Cansada da desculpa, pôs pés ao caminho e foi bater-lhe à porta, na Rua de S. Bento. De novo, disseram-lhe: "A Dona Amália foi ao dentista". Perguntou: "Mas a Dona Amália ainda tem dentes?". Nisto, aparece à porta Amália, em pessoa. Estrela não conseguiu pensar e saiu-lhe: "Tem dentes, tem. E são bem bonitos!". A amizade durou até à morte da fadista.

e alguém se oferece para resolver o problema?

Jacarandá não rima com vento forte, chuvas incessantes e o ritmo dos limpa pára-brisas no máximo. O meu calendário emocional, onde as árvores do Carmo e da Rodrigo da Fonseca têm lugar de destaque, também se dá mal com estas temperaturas, com o vento que me acordou várias vezes, com a chuva que me deixou em angústia permanente durante toda a noite. Mesmo com a má vontade do S. Pedro, ou seja lá de quem for, os Jacarandás já floriram e eu estou para aqui a tentar convencer-me que não estão 15º e que não voltei a calçar sapatos depois dos pés se terem regozijado com sandálias de sete centímetros.

domingo, maio 10, 2009

estados d'alma

capaz de vender a alma ao diabo por 24 horas sem relógio

sábado, maio 09, 2009

palavras dos outros em dias de água

Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão.

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.

Fernando Pessoa

sexta-feira, maio 08, 2009

Estórias de Amor - A Faca

Naquela noite aventurara-se pelos subúrbios da cidade, rumo à casa que ele habitava com os pais, algures numa qualquer linha. A de Sintra. Não seria um prédio gigante, aquele, pois se nem tinha elevador... Saiu do comboio sozinha já a lua, comida de lado, estava bem alta. Mãos nos bolsos, mala a tiracolo mas bem presa no braço, passos rápidos rua acima à procura daquele número 37, um terceiro andar, direito. As varandas tinham sido fechadas pelos proprietários, alheios às leis camarárias. O arquitecto nem chegara a saber que ali nasceriam marquises. Já ninguém queria espaços abertos, vista de rua, só para o Verão. (Ela) Não se importou com os olhares, nem com os ruídos que atrás de si pareciam segui-la. Tinha agora 20 anos, e nenhuma vontade de viver. Ia pedir-lhe contas, dizer que estava tudo acabado, que não aguentava mais. A porta da escada estava aberta, ou não fosse aquele um bairro de gente conhecida - Porém, estouvada, descuidada. Subiu as escadas devagar, como se atrasasse o diálogo que a esperava acima. Sabia que ele estava só naquela noite de sexta-feira. Sabia que podia confrontá-lo a dois. Sem mais nada, mais ninguém. A porta abriu-se para deixar ver um roupão já russo, castanho claro (o chamado beje), com cinto de apertar à mão, barba por fazer e um comando de televisão no bolso. Parecia um filme americano: a imagem do homem que não interessa a ninguém, o desleixo, a desilusão. Seria fácil dizer ao que ia. Entrou. O discurso fluiu com a serenidade de uma mulher aperaltada diante de um homem sem estilo. Mas ele não a deixou acabar. Que não, que a amava, que teriam de continuar juntos, que não aceitava um não, muito menos uma despedida. Quis livrar-se dele. Sem pensar, correu porta fora e despediu-se com um nunca mais nos lábios rosados. Deixava-o em casa assim, de chinelos de dedo, sem marca, robe envelhecido, corpo mal tratado. Desprezível. Ele não terá notado, não terá assumido o espelho que ela quis então ser. Correu atrás dela. Os minutos que se seguiram fizeram lembrar um filme de terror, uma fuga à polícia, um assalto a um banco, uma corrida de estafetas, um lugar fugidio e uma vida para trás. Os chinelos seguiram-na, atravessaram ruas, calcorrearam passeios, correram, saltaram, nunca quiseram parar. Ele seguia sobre eles, qual Moisés sobre os mares, e abria caminho para apanhá-la. Pararam. Encostados a uma parede, gritaram. Sofreram. Estavam já longe de casa, mas perto de outras, onde vivia gente. À janela, uma mulher, desconhecida, faca na mão. Ameaçou-o. Que o matava se fizesse algum mal à miúda. Ela corou. Pois, se o amava... Os dois esconderam-se na noite e da mulher à janela da cozinha. Seguiram de mãos dadas, ele de chinelos, ela de sapatos. Calçado tão diferente que agora caminhava junto. Já não importava a aparência, àquela hora da vida.

'i'm a fool to want you'



[E eu nem sequer gosto de Chanel]

quinta-feira, maio 07, 2009

Estórias de Amor - A Farda

A noite fazia-se quente à medida que avançava. Naquele lugar à Beira-Tejo não era só a temperatura a subir. Havia Fiats e Fords, pequenos automóveis com donos sem dinheiro para pagar a gasolina, vidros embaciados e o lugar de trás ocupado. Ela era uma dessas raparigas no início da juventude, apaixonada, a descobrir um mundo a que muitos chamavam sexo mas que ela insistia em dizer que não era mais do que amor verdadeiro. No banco de trás, saia arregaçada numa lua de Verão, ele por baixo dela e ela ao colo dele. Encaixavam os corpos como podiam e não queriam saber que posições mantinham os do carro do lado, porque ninguém se importava com ninguém, quando o que importava era o que se passava dentro de portas e de vidros lisos. Tomara que fossem foscos. Respiravam fundo e entregavam palavras de gozo um ao outro. A saia cobria parte das pernas e as sandálias de salto há muito rodavam perto dos tapetes, descalças. Ele tinha os jeans a meio corpo, desapertados, boxers aos quadradinhos abaixo da anca, a a pele branca a roçar-se na dela.

O toque fê-los dar um salto. O Citrôen AX de um modelo antigo deu cor ao rubor que traziam no rosto. No vidro sem sombra, os nós dos dedos apagavam o terno embaciamento da noite. Deixavam marcas e faziam barulho. Lá fora, o homem de farda azul olhava para eles e gozava o momento. Calças à pressa puxadas para cima, as cuequinhas de renda arrastadas das pernas, sandálias que voltavam aos pés e um salto para a rua. Só ele, que ela estava demasiado embaraçada para existir.

Nos outros carros observava-se agora o Rio e a Ponte. A lua dava sinais de tréguas e todos respiravam fundo, os que não tinham sido surpreendidos pelos dedos da farda. Ele dava desculpas e tentava provar que não, que não era atentado ao pudor, que ali todos faziam o mesmo, que não havia crianças, nem velhinhos, nem turistas a passear ao longo da noite. No banco da frente, ela ouvia baixinho o que se passava lá fora. Via-o humilde e quase arrependido, à procura de uma justificação para não lhe resistir. Teve medo.

Tinham passado 24 horas. Ele esperava agora pelo homem da farda azul, numa rua algures na cidade. Sítio combinado, talvez perto da esquadra, ele nem sabia bem. No bolso, a vergonha da noite anterior e uma nota de 20 euros. Não se pedia mais a um rapaz de 19 anos. Viu-o chegar, assobio na boca e cassetete à cintura, talvez sem nunca ter sido usado. Ela em casa, a criar imagens de uma situação que não vivera até ao fim mas que também provocara. O arrependimento era de ter sido apanhada e prometeu não repetir a proeza. Pelo menos ali, à beira-Tejo. O polícia aproximou-se e sentiu-se satisfeito por ter criado problemas a mais alguém. Pouco importava se uma casa era roubada, ali ao lado, se uma mulher era violada, se uma idosa era espancada. Aquele rapazinho tinha de pagar por amar alguém, assim, desenfreadamente, à vista de todos, sem vergonha. E o polícia, que há muito não sabia o que era o amor.

A conversa acabou com menos 20 euros no bolso e uma tentativa de receber mais. Livrava-o da prisão, e da multa maior, e da vergonha na esquadra, é certo... mas queria a sua parte, o suficiente para uma bica e talvez três ou quatro jolas, que a tarde estava para esquecer. Ele libertou-se da nota sem medo. As mesmas calças que antes tinham sido arrastadas pernas abaixo, guardavam agora o vazio de uma noite que tinha prometido ser densa. Não olhou para o homem fardado quando lhe passou o dinheiro para a mão. Fixou-se na farda e sentiu vergonha. Não por ter sido apanhado em plena noite da cidade a fazer amor com ela. Mas porque no dia em que vivia, um homem só trocava o pudor por uma nota de 20.

quarta-feira, maio 06, 2009

pesadelo sem ar condicionado

A Carrie já esteve mais longe de vir trabalhar de biquini. E ainda estamos em Maio.

segunda-feira, maio 04, 2009

Da infância



Obrigada, Vasco Granja!

privação

Passei duas vezes pelo doloroso processo de deixar de fumar. O lema é mais do que conhecido, nada de grandes ambições, viver o dia para chegar ao fim sem voltar a tocar num cigarro. Agora descubro que há síndromes de privação bem piores que o da nicotina. E o meu único desejo é que os ponteiros dêem nova volta ao relógio. Uma hora de cada vez parece-me bem mais racional.

domingo, maio 03, 2009

Sim, a Feira

Ao terceiro dia de visita lá comprei um livro. Aliás, dois. A 6 e a 8 euros. E mais um Eça para a minha colecção adquirida ao longo dos anos neste (meu) sítio do costume. Ele comprou 83. Só hoje! Haverá melhor forma de poupar do que ler um livrinho emprestado?

vontades

haverá pouca coisa mais afrodisíaca do que o cheiro de uma noite de verão.

Pilhas de livros

Também já fui à feira e também comprei. Cinco livros, uns mais baratos do que outros. Ainda tenho para ai, numa pilha no chão ou na mesa de cabeceira, livros de feiras anteriores que ainda não consegui ler. O jeito que me dava que houvesse também uma feira do tempo...

Ainda a Feira

E ao terceiro dia, fiz directos toda a tarde. Ouvi um velhinho a relatar um jogo do Benfica - antes de saber que ia perder com o Nacional da Madeira - enquanto me dizia que a mulher gostava era de novelas, mas que ele, ele queria futebol. Mas tudo nos livros, que a televisão não chega. E onde se compra o livro do Benfica?, perguntou. Encaminhei-o para a rapaziada vestida de vermelho e disse-lhe que eram do clube, escondi o facto de serem apenas funcionários da Leya. Deixei-o ir à procura da leitura patriótica, do amor à camisola, e perdi-me a olhar para Lobo Antunes. António. É um homem como poucos, acho eu. Tem uma cadeirinha para cada leitor a quem dá autógrafos. Não se limita a apertar a mão e escrever "um abraço do António e veja lá se lê mais um e continua a comprar". Não. Espera, ouve, deixa-se levar, conhece, dá-se a conhecer. Adoro o homem, confesso. E ainda mais quando sei que a Margarida Rebelo Pinto pensa tê-lo como confidente e amigo e, afinal, pensa ele que ela é uma chata. Acha-a bonita?, perguntou-me um dia. Não. Os miúdos brincavam com meias e meias palavras ficavam sobre livros. Faziam fantoches com botões e outras coisinhas que se arranjam nas caixinhas da mãe - amanhã é dia da mãe, amo a minha - e dali contavam estórias com a ajuda de umas meninas com chapéus de palhaço, não, não eram bem palhaços, eram aqueles que tentatavam fazer rir os reis, os bobos. Eram chapéus de bobos. A feira do livro é um mundo e acontece muita coisa ao mesmo tempo. Os livros são uma vida, um amigo, uma paixão, um cheiro que se guarda, uma palavra que fica, uma lombada virada para nós. E ali estive, uma tarde, no meio de tudo isto. E de sol.

sábado, maio 02, 2009

jardim da estrela

Passo a tarde com os pés descalços enterrados na relva e com muito mimo. Delicio-me com palmo e meio de gente que se aninha nas minhas pernas e ri muito. Grandes olhos azuis de quem vê o mundo pelas primeiras vezes. É de riso fácil o A. Passo a tarde entre o sol e a sombra com gargalhadas sinceras, conversas boas, pura parvoíce e planos para o futuro que se quer mais leve, mais preenchido. Lembram-se noites compridas, de pura esquizofrenia, de caracteres fáceis, choro e riso. Recorda-se um casamento, mesmo ali ao lado, a viagem dos noivos no 28, os dias que então passaram. Passo a tarde em pura preguiça e esqueço por horas que a vida tem coisas lixadas.