Amália
Quando era miúda achava que o fado era coisa de velhos. Punha-o no mesmo patamar da ópera e do folclore e dizia "não gosto" com o orgulho de quem vai na flor da idade e ouve dizer assim. Amália não me dizia nada, era apenas uma mulher de negro vestida que cantava fado e que não apreciava. Sabia-a famosa e pouco ou nada mais conhecia sobre ela. Um dia, já nos vinte e poucos anos, quis a minha profissão que me cruzasse com ela. Foi numa noite de fim-de-semana, no Parque das Nações, no teatro Camões onde era convidada após uma actuação. Estava já velha, naquele ano de 1998, quando a Expo '98 a levou ao palco pela última vez. Eu estava lá, no cair do pano, nos bastidores, e vi. Amália era então motivo de risota quer por ser já ida na idade que tinha, quer por ter tiques que muitos ainda imitam com um sorriso - como aqueles das palminhas e das mãos que pedem mais quando diz "obrigada" e repete "obrigada".
Por tudo isto, só dei valor a Amália depois de morta. Agora, que passam 10 anos sobre esse 6 de Outubro que vi na televisão, sobre o dia em que passei para word uma mensagem de condolências a enviar pelo ministro da altura, Manuel maria Carrilho, dia em que o gabinete ficou tão só, ao olhar a multidão que chorava e clamava por ela. Só então, Amália. Que Deus quis fosse o seu nome.
Quando passa esta década sem ela, dedico-me a preparar trabalho sobre Amália. Já passou a Grande Reportagem que há-de repetir e (voltar a) valer a pena; amanhã um Especial para ver quando forem 18H na SIC Notícias, e muitas reportagens sobre exposições e homenagens, a uma mulher que feliz, deixou de o ser para ficar triste e depois morrer. Hoje ouvi Amália e arrepiei-me. A voz que Deus levou era, de facto, única, e nenhuma outra surgiu igual. Bem dizem os que a acompanhavam que nem Mariza nem Mafalda, nenhuma fadista se compara a Amália. Podem ter vida e sucesso e podem ser referência lá fora, mas foi Amália quem lhes deu caminho, foi Amália quem deu ao fado o mérito de ser canção.
A caminho dos 40, eis-me com Amália nas mãos e vontade de escutá-la. Respeito hoje a mulher a quem dei o braço sem pensar mais que de uma velhota se tratava. Vaidosa, fora do tempo, fora de si. E, no entanto, única, como só mais tarde consegui ver. Mas sinto que ainda vou a tempo. Vamos todos.
1 comentário:
Eu serei a típica diferente. Cresci a ouvir country e a ouvir fado, cresci entre duas costelas que mal se conhecem e se tocam, mas que convivem num mesmo corpo. Do ouvir passei ao cantar - em casa, fechada, sem público. Foi talvez a forma de alimentar uma alma de costelas divididas. A mostrar-me só na escrita, só nas palavras, faladas e não cantadas mesmo se revestidas de um italiano galante.
Não conheci Amália. Convivo com ela nas televisões, nas conversas, nos fãs, nas músicas, nas tábuas de um caixão soturno que nos é lembrado a cada dia e que preferia desconhecer. Gosto de Fado, mas não de todos os fados. Gosto de fadistas, mas não de todos os fadistas. Mas, confesso, ficar feliz quando não existem mais Amálias. Se não existem mais Marizas nem Mafaldas nem Carminhos, porquê procurar mais Amálias?
Vejo o Fado hoje bem entregue a mulheres que se balançam cuidadas e elegantes no tom e no trato - a tasca tornou-se salão e os salões as tascas mais portuguesas. O Fado hoje já não se veste só de preto, porque a tristeza que canta é uma tristeza feliz, uma dor de alma celebrada no trinar das guitarras e das violas que lhe dão expressão. O Fado hoje já não é só Alfama, Bairro Alto ou bairro algum. O Fado hoje já não é só a Santarém de toiros e cavalos. É Fado. É Português. É muito mais que tudo ou quem alguma vez o foi. O Fado hoje é tudo isso e poesia, essa poesia que o é mesmo quando não se a lê. É Ary, é Pessoa e todos os outros; é a palavra-poema que se canta com alma.
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