sexta-feira, março 30, 2007

40 anos

Sentei-me do lado esquerdo porque o direito estava já ocupado. Ele, no meio da mesa, como anfitrião, à espera que chegassem os 30 amigos que tinha convidado para o jantar. Ele vestido de jeans, como todos os dias, barba feita e bigode aparado, um pólo azul, também de dias normais, sem parecer mais velho, sem parecer festivo, apenas parecido com ele, naquela postura com graça e até nervosa com medo de desagradar os convivas.

O presente foi um sucesso. Chamaram-lhe relógio de sala mas só eu sei o quanto aqueles olhos doces já tinham percorrido as montras das relojoarias à procura daquele Calvin Klein. Gigante, bonito, acertado pela hora GMT. Em ponto. Como ele gosta. Tudo a horas. Como é obcecado com isso... Foi quando me deu o primeiro beijo da noite. E sorriu com os olhos e com o coração, aproveitando para gozar o facto de a vendedora se ter esquecido do talão do preço pregado ao relógio. Acontece, com estas tontas dos centros comerciais que pouca atenção dão ao cliente mesmo quando se trata de uma compra de quase 300 euros. Fortunas. Poupanças que fiz para lhe ver o sorriso da noite.

Partilhámos a paella e nunca pegámos na mão um do outro. Não foi preciso. Mesmo à esquerda eu ali estava, ao lado dele, companhia e companheira, 'a minha namorada' como disse bem alto. E todos estranharam, rindo. Tu já dizes 'a minha namorada'. Tanta coisa mudou nos últimos tempos. E mudou. Também para mim quando digo que é ele o meu namorado. Que tenho um, que me orgulho disso. E dele. Que me deixa descansada e me tornou mais serena nos últimos meses. Já aqui falei do Panda. Mas agora ele tem 40 anos.

O bolo foi improvisado e uma vela foi apagada. Corou por lhe cantarem os Parabéns e sentiu-se feliz por estarmos ali. As pessoas importantes, os amigos de verdade, os que mais o querem e a quem ele mais quer. Os que faltaram tinham razões plausíveis. Mas quase todos vieram. Quase todos. E eu ali estava, a vê-lo feliz, a não me importar com mais um ano de vida, mais um ano a separar-nos à espera de mais uns meses para encurtar a distância. Mais um ano de planos por fazer, opções por tomar.... ou, quem sabe, um ano de decisões.

O Panda fez 40 anos. Muitos Parabéns Panda, eu gosto de ti nessa idade maior.

terça-feira, março 27, 2007

Ausência de escrita

Não tenho andado nada inspirada. Deito-me à noite na cama e penso naquilo que deveria ter vindo escrever aqui, ao blog. Faço textos inteiros na minha cabeça mas sou incapaz de me levantar para ir até ao computador e deixar um pensamento, uma frase que seja.

Faço-o agora num intevalo de trabalho, num dia que tem sido de loucos - o dia do teatro, na minha Editoria, é um dia difícil - no meio de uma semana sem apetites para uma letra. Agora escrevo só para dizer que ainda cá estou, para dizer à Carrie que ainda sou companheira destas vidas, para dizer a mim própria que ainda consigo tempo para escrever. Falta-me é a imaginação...

Às vezes sento-me ao volante e, na CREL, magico histórias para pôr aqui. Conto-as baixinho, de fio a pavio, mas quando chego ao computador do trabalho, só posso teclar alinhamentos e pivots, peças e offs que num instante ficam esquecidos no pequeno ecran. Então, não escrevo no blog.

Também me acontece estar com amigos e ter coisas para contar. E até já me aconteceu estar sozinha num quarto, no Funchal, com um computador só para mim, sem sequer ter postado uma fotografia da terra que não gostei de visitar. Nada. Nem vontade, nem inspiração.

Hoje venho aqui bater com a mão no peito.

Talvez em breve volte a bater os dedos no teclado, da mesma forma rápida com que o faço noutras ocasiões. Dessa vez, para falar ao blog.

Quinta-feira, 11h00

[posts em diferido]

Tenho a mania. Tenho várias manias, mas esta é provavelmente a pior. Sou auto-suficiente. Ou gosto de pensar que sim. Acho que ninguém tem que carregar os meus fardos. Sentido literal e figurado. Não saio do pasquim enquanto não cumpro as minhas obrigações. Vou agora descobrir se tenho capacidade para delegar. É o próximo desafio.

E depois há as outras coisas. Em dias de mudança… vou encaixotando o que posso, quando posso. É um trabalho lento. Arranjei caixas pequenas, que não encho na totalidade para que os meus 50 quilos de gente possam carregar. Vou levando as coisas aos poucos quando preciso de ir controlar os homens das obras ou fazer qualquer outra coisa. Não peço ajuda. Não sei como se faz. O R. impôs-se outro dia. Levamos meia dúzia de caixas de uma assentada. Confesso que fiquei envergonhada por o ver fazer o meu serviço. É assim com tudo. E preciso de mudar. Por isso perco a vergonha e peço colo. E mimos, muitos mimos.

quarta-feira, março 21, 2007

Dia da Poesia

- Tabacaria -

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.

à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio?
Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho genios como eu,
a história não marcará, quem sabe?,
nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim?
Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;Come chocolates!Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.Come, pequena suja, come!Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeiraTalvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o;
é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos

terça-feira, março 20, 2007

Gaja que é gaja gosta de sapatos...


[Candela Cort, designing for Pedro Miralles, is put on display at the "Reinventing Shoe" footwear exhibition at La Capella dels Angels in central Barcelona March 20, 2007. REUTERS/Gustau Nacarino (SPAIN)]

[Shoes designed by Royo Comunicacion ]



[Shoes by Isidro Ferrer, designing for Zampiere]

Agora algo realmente importante

Anda uma mulher preocupada em arranjar tempo para dormir. A pensar em caixotes. Empresas de mudanças. O dia para a limpeza geral. Carpinteiro para fazer o ‘forro’ dos armários. Decoração da casa-de-banho. A infiltração que o construtor ainda não resolveu. O dia de abandonar a casa antiga. Saber ojnde vai dormir nessa noite. Como montar os electrodomésticos todos de uma vez. Anda uma mulher a pensar nestas coisas e não liga ao que é realmente importante. O Benfica ganhou ao Estrela e está a um ponto do Porto.

quinta-feira, março 15, 2007

Acabou

Vou comprar cigarros e fumar um maço inteiro daqui até às 15h.

segunda-feira, março 12, 2007

Mudanças

Haverá poucas coisas mais extenuantes do que mudar de casa. Talvez mudar de casa quando se mora sozinha. Tenho a casa em caixas de cartão. A vida dividida entre o presente e o futuro. Parte na casa nova. Metade aqui. A outra metade atravancada no escritório. Caixotes atulhados de livros. Roupa. Formas de bolos. Lençóis. Panelas. Pratos enrolados em jornais às camadas. Prefiro o Expresso, de preferência das edições mais antigas. Andam armados em finos e o papel está menos maneável. Passei o fim-de-semana nisto. As mãos negras dos jornais. Os braços doridos de carregar caixas. Cheia de pó da cabeça aos pés. Já pensei em mandar tudo para o lixo. Há coisas que não me lembrava que tinha. Outras que duvido que algumas vez volte a usar. Acumulamos demasiada história. [Lixo?] Que pesa. Pesa ainda mais a cultura. Nada custa mais do que transportar as caixas dos livros. E nunca mais acabam. O que preciso é de tempo. Dois dias inteiros e fica tudo no mesmo sítio. Depois logo se arruma de uma vez por todas. Até quando?

sexta-feira, março 09, 2007

Antecipação

Antecipo uma semana de descanso, de bons livros para ler - pelo menos um - de fotografias tiradas ao sol, de massagens e de um bom colchão com lençóis a cheirar a lavado. Antecipo quatro dias sozinha, sem mais sons senão um i-pod, sem o telefone a tocar, sem companhia, mas com a cabeça no lugar. Para pensar. Para sonhar. Para estar com aquela parte de mim que anda sempre zangada porque não lhe passo cartão, para dar atenção à outra parte que se sente triste e desmotivada, para encorajar o todo e dizer ao corpo que é preciso viver e que isso até pode saber bem.

Em tempo de ambiguidades políticas sigo para o Funchal para um hotel que me dizem ser simpático, cinco estrelas, massagem incluída, sauna e outras mordomias ao dispôr.

Levo umas olheiras profundas, uma cabeça cansada e um corpo a pedir cama. Levo uma ou outra preocupação, um namorado de cama, uma família a espirrar, um emprego a gritar o meu nome. Mas só conto preocupar-me com algumas destas preocupações. As que realmente contam porque as outras quero dispensá-las, esquecê-las, saber que não existem durante uma semana. Mesmo que voltem à carga numa segunda-feira de regresso à vida normal

Preciso deste tempo. E quem está comigo, todos os dias, também precisa que eu o tenha.

Carrie no mundo das pessoas crescidas [ii]

Passou tão pouco tempo. No calendário as páginas foram arrancadas devagarinho. Sem grandes sobressaltos porque não havia tempo para isso. Passou pouco tempo, mas todos os dias crescemos um bocadinho. Sem rede, dei mais um passo no mundo das pessoas crescidas.

À laia de comemoração – marcada com vários meses de antecipação dentro de um envelope vermelho – apanhei um avião e passei dois dias à chuva. Londres é bonita se vista com a companhia certa. Há fotografias desses dias. Há sempre fotografias. Há sorrisos e lágrimas. Gotas de sal que escorreram cara abaixo enquanto adormecia com a cabeça numa almofada emprestada. As últimas semanas foram dias de muitas lágrimas. Ainda hoje não sei porque. Uma revolta muda contra um par de pantufas. Já passou o choro. É bom contar com a companhia do sol. Com o cheiro dos dias que aquecem devagar. A Primavera está aí.

domingo, março 04, 2007

Hoje é domingo e acordei

Oiço a máquina da roupa às voltas pela segunda vez, esta tarde. Lençóis e tolhas, roupa branca que se acumulava no cesto da roupa suja, como tudo se acumula, na minha vida, ao longo da semana. E depois respiro.

Há dias em que apenas suspiro. Cabeça enfiada na almofada, cobertores e edredão em cima mais um lençol e uma manta porque sou mesmo friorenta e os olhos pesados que não me querem tirar dali, a cabeça às voltas com os sonhos que sonhei, o corpo preso na cama que dobra e faz massagens mas que não disfruto há meses. Suspiro de manhã quando já é tarde, quando já começou a reunião no trabalho, quando já sei que o meu lugar está vazio, quando sinto que já notaram a minha ausência.

Hode é domingo e acordei. Eram duas da tarde, mas acordei. Lutei contra o corpo preguiçoso, o mau-feitio e a falta de vontade, contra os comprimidos que me deixam assim, contra os sonhos que se atropelam e transformam-se em pequenos pesadelos... Ergui-me para ir tomar um pequeno-almoço que, para além do costumeiro galão e pão de cereais com manteiga incluiu um cheesecake. Há mais de um mês que não comia cheesecake e este soube-me pela vida, como se costuma dizer.

A minha casa não era uma casa quando voltei a entrar. Era um antro de caixas e caixotes trazidos do IKEA, roupa na sala e no quarto, tudo por arrumar. Roupa lavada na lavandaria do senhor Carlos que, de quinze em quinze dias, leva tudo para passar a ferro porque eu já não consigo assegurar a tarefa. E livros por todo o lado, sapatos e malas espalhadas, bem ao gosto de uma loja em saldos. Últimos dias.

Depois foi o abrir das tais caixas e caixotes, montar uma estante nova - fica linda - e descobrir que os outros objectos que comprei - mais uma estante e um charriot - não traziam as peças todas. Sentei-me no chão quase a desistir. Como podiam as peças não estar lá? Eu paguei um produto que garante tudo e mais alguma coisa - menos grande qualidade, já se sabe - para que a pessoa possa distrair-se no bricolage.
E lá pus tudo de parte e incluí, para esta semana, uma ida ao IKEA para reclamações. E amanhã chega um sofá novo cá a casa.

A máquina já parou e não rodopia na minha cabeça. Sei que está frio lá fora mas, ainda hoje, me chamam para estender a roupa que foi lavada ainda agora. E se deixasse para amanhã? Ainda vou ver como está o tempo e decidir o que fazer. Mas tiro tudo da máquina para evitar as rugas e os embrulhos para o senhor Carlos.

Este domingo acordei e não pude almoçar. Já passava da hora de almoço. O jantar também se apressa em fugir porque não descongelei nada e esta solidão tira-me a fome. Amanhã acordo para receber o meu novo sofá e para ir trabalhar. Amanhã tenho desculpa para não me sentar numa daquelas cadeiras da sala do director. Mas depois não, nem depois, nem depois. Terei de acordar e sair da cama como faz toda a gente que tem horários para cumprir. O meu relógio está confuso e exige-me mais horas na cama. Mas terei de fazer de conta que não é domingo, para me levantar e sair de casa. Talvez deixe a cama por fazer...

Hoje é domingo e acordei sozinha. Os meus vizinhos estão todos aos gritos, aqui ao lado.