quinta-feira, setembro 28, 2006

O casamento de uma das nossas

Uma de nós vai casar.

Não sou eu, claro, a única que já passou pela experiência e chumbou sem distinção. Mas é uma do grupo e não podia deixar a oportunidade em branco... mesmo que seja da cor do vestido.

Aquela que casa, já vive com o futuro marido há alguns anos e, portanto, já saberá como comportar-se nas noites em que ambos chegam tarde a casa e não têm tempo para conversar; nos dias em que ambos acordam mal-dispostos; nas noites em que um acaba por não chegar; nos dias em que se cruzam apenas para um bom dia/boa noite...

Mesmo assim vai casar.

Do alto da minha experiência casadoira, e em primeira-mão, seguem os meus votos de felicidades. Não aqueles económicos que seguem com um aperto de mão, uma beijoca ou envelope... mas aqueles que são sentidos, invejados, até, chorados e molhados. Porque a alegria dos outros também nos emociona.

Eu espero que a tua seja imensa. E que a verdade do 'para sempre' se concretize como nos contos de fadas.

Sonhadora?
A realidade ensinou-me a continuar a acreditar mesmo naquilo que se duvida até à morte. Felizmente somos todos pessoas diferentes.

Parabéns, amiga!

Momentos

São 22h41 e eu estou de férias. Sonho. Gritos do editor. Barulho de teclados. Pizzas extra-queijo na mesa da sala de fumo. Jornais empilhados na secretária. Papéis rabiscados com notas tomadas a correr. Cinzeiro semi-cheio. Gargalhadas de descompressão. Stress conjunto. Ar consumido por horas e horas de janelas fechadas. É um sonho. Dos bons. Estou de férias. Vim trabalhar porque há momentos que não se perdem. Gosto da notícia pura. De sentir as coisas acontecerem. Aquilo que faço é parte de quem sou. Por muito que refile. Esperneie. Diga mal de meio mundo. Discuta com o restante. Apesar de tudo isso, interrompo as férias com a certeza que há momentos que não se repetem. Não o faço pelas palmadinhas nas costas. Pelo reconhecimento dos chefes. Faço-o mesmo sabendo-me alvo dos olhares dos colegas. Faço-o porque, ao fim de dez anos, há alturas em que vibro como no primeiro dia. E isso é bom. Muito bom.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Recorde[s]

Guarda - Lisboa: duas horas.

Aeroporto - Casa: Uma hora.

Sonhos

Tenho dificuldade em lidar com os sonhos. Nunca sei onde começam e terminam. Não basta abrir os olhos. Há imagens tão fortes, que se estender o braço. Se abrir a mão. Vou tocar aquela imagem. Uma reprodução com uma existência tão real como eu própria. Há uma semana que sonho com viagens. Aviões. Aeroportos. Cidades que não conheço. O peso das malas. Só não sei se quero sair daqui. Se apenas quero sair de mim.

terça-feira, setembro 26, 2006

Sessão de Engate I

Vestiu a camisa mais decotada e pô-la por fora dos jeans, desabotoada em baixo, com o umbigo a ver-se ao primeiro movimento. Umas botas de salto modelavam-lhe o rabo e perfumou-se com o Hot, da ralph lauren, um cheiro quente e quase sempre de abrir o apetite. Meteu o telefone no saco, a carteira com a carta de condução e o BI, as chaves do carro e saiu. Não se esqueceu de um casaco novo que quase estava a estrear, porque a noite já se fazia fresca e o Verão tinha acabado de acabar...

Ia encontrar-se com ele pela primeira vez, fora do escritório, fora dos olhares curiosos dos colegas, e dos risinhos delas, das amigas lá do trabalho. Não queria ir nem muito vulgar, nem muito sofisticada. Tinha lido na capa de uma revista que os homens se assustam com uma mulheres demasiado produzidas. Por isso pintou os lábios ao de leve e pôs um rimel discreto que apenas lhe abriu mais os olhos castanhos.

Estava impaciente. Já tinham dito tanto um ao outro, mas só pelo 'messenger', só via computador, só através de mensagens escritas, que isto agora as amizades fazem-se assim, à distância, sem cartas de quatro folhas, mas com 3 ou 4 de linhas e palavras encurtadas numa linguagem de formulário. Olhou para o relógio, um Gucci de pulseira dourada e duas voltas no pulso. Eram nove e vinte. Tinha dez minutos para chegar ao restaurante. Dava tempo. Para isso, e para um 'valdispert', porque estava demasiado apreensiva... O primeiro encontro desde há quatro anos! O primeiro homem desde um ex-marido matreiro, mentiroso e sem escrúpulos. O primeiro passo para uma confiança extra.

Viu logo o carro dele estacionado à porta. Um Audi A3, preto, matrícula qualquer coisa, 'BU'... Ele estava lá dentro a fumar um cigarro, vidro meio aberto, meio fechado, blusão pendurado no assento de trás.

Continuou a andar.
- Boa noite. Vim cedo demais?

Ele abriu a porta e apagou o cigarro. - Nem pensar, respondeu, já estava a sentir a tua falta. - Meu Deus, um primeiro piropo, pensou. Sentiu-se corar. Estava desejosa de falar com ele, de esclarecer tantas coisas que tinham ficado em aberto naquelas conversas surdas, de perceber o porquê daquela atracção, de justificar uma saída à noite pela primeira vez, em tantos meses...

- Entramos? Marquei mesa. - disse ele. E empurrou-a devagar, pelo braço, e ela sentiu-lhe a força dos dedos e arrepiou-se. Ia tropeçando no degrau, mas lá se endireitou e ficou mais descansada quando percebeu que, exactamente nesse momento, ele olhava para trás para trancar o carro.

Deu-lhe passagem para que falasse com o empregado. Sentaram-se numa mesa ao pé da janela e já havia entradas à disposição. Estava esfomeada mas conteve-se e só pegou no pão torrado quando ele fez o mesmo e lhe passou patê em cima. Ela escolheu a manteiga com alho, mas depressa se arrependeu. Trocou discretamente o pacote e começaram a falar do trabalho, dos colegas e de tudo o que podiam ter falado no escritório mas que nunca falaram. Por pudor.

O empregado trouxe o menu.
Pausa na conversa.
Quando retomassem, tinham de tocar no assunto.

domingo, setembro 24, 2006

Um desejo

Eu tento. Juro que tento. Continuo a escrever posts mentais. Comecei centenas em 300 quilómetros de estrada [já com ar condicionado]. Mas quando me sento aqui não há nada que faça sentido. Todos os dias a mesma página em branco. Hoje ia escrever sobre o tempo.

[Dizem-me que o Outono já começou. Mandam-me malmequeres para suavizar o impacto da [má] notícia. O calendário dá-lhes razão. Há datas que por mim passavam em branco. Não quero celebrar o regresso do frio. Corre-me nas veias sangue dos trópicos.]

Lembro-me que há um ano fiz o mesmo. Lá se vai a vontade. A imaginação. Também já pensei em escrever sobre o SOL. Mas lá está... quem tem telhados de vidro... Podia escrever sobre o Rio. Estive lá ontem pela primeira vez este ano. Mas há coisas que simplesmente não consigo meter no papel. Sobre a indignação que me provocou a reportagem de há pouco na SIC. Do miserabilismo de um País que não sabe fazer uso dos recursos que tem. Não é este o tom deste blog. O futebol não merece duas linhas. Não enquanto lá estiver inginheiro. Há o trabalho. ‘És daquelas que acha que a empresa não funciona quando não estás!’ Sim. É mais ou menos isso. Mas é acima de tudo o bichinho. E esse não se explica. Sente-se nos sorrisos de quem tem um ‘segredo’ que mais ninguém conhece. Na adrenalina de quem conseguiu uma ‘chacha’. Mas simplesmente não se explica a quem nunca o sentiu.

Afasto o computador. Penso que não vale a pena continuar. É de esperar por melhores dias. Vou até à varanda. Fustigada durante todo o dia por um vento gelado. Sento-me a olhar para a lua. Acendo um cigarro. Espero por uma estrela cadente...

[De cada vez que me queixo de não saber o que escrever, volta a incontinência verbal. Pode ser que a tradição se mantenha.]

O dia em que me esqueci do teu aniversário

O telefone tocou já era noite escura e a tua voz, do outro lado, ordenou:'Dá-me os Parabéns!'. Incrédula, a pensar que tinhas tido uma benesse lá na empresa, pousei os talheres da minha salada de rúcola com salmão e presunto e perguntei: Porquê? - Porque faço anos hoje!

A resposta caiu-me como uma bomba. Tu, uma das minhas melhores amigas, especial como és, estavas esquecida num dia que para ti é tão importante: o dia do teu aniversário. E mesmo nos teus 28 anos, eu sei que ficas triste com estes esquecimentos e eu, nos meus 33, sinto-me uma inútil, má amiga e, sobretudo, desmazelada do ponto de vista pessoal. Esqueci-me do teu aniversário... E já não foi a primeira vez...

Tinha nascido a minha sobrinha, nesse dia, e eu tinha andado de lá para cá a tentar ter tempo para ela e para os que dela agora dependem. Na altura, jantava com o pai da criança. Nesse dia, o trabalho tinha-me ocupado a cabeça mais do que devia e não pude dividir mais as atenções. Nesse dia acordei mal disposta porque não tinha dormido de noite e a manhã fez-se de meias de leite e olhos embaraçados. Nesse dia não me lembrei de ti.

É por isso, amiga, que agora, em jeito de pedido de desculpa, transformo este post num postal de Parabéns! Porque gosto realmente de ti e porque levo a sério esta nossa amizade começada em tempo sereno, para as duas, mas que já ultrapassou grandes tempestades, de um lado e do outro. Para ti, lá no meio do Atlântico, segue um abraço apertado, porque a amizade tem destas coisas e os esquecimentos também se perdoam. Aliás, aos amigos quase tudo se perdoa, ao contrário do que fazemos com namorados e maridos, a quem acusamos de tudo logo à primeira falha. A vantagem de ter amigos também é esta. Não sermos julgados pelas falhas cometidas, antes compreendidos.

A minha agenda tem agora dois aniversários a 21 de Setembro. Dificilmente voltarei a esquecer o teu dia de anos. Porém, nunca me esquecerei de ti!

sábado, setembro 23, 2006

Tia

Chama-se J. e tem uma mãos pequeninas, com dedos compridos e unhas esticadas ainda sem precisarem de corte. Tem 2 dias e já abre a boquinha de forma redonda, e os olhinhos, muito de vez em quando, porque ainda não lhe apetece ver a vida como ela é. E mais vale dormir todos os bocadinhos que se pode.

O cabelo existe, mas não é muito, naquele rosto redondinho, branquinho,
sem parecer ter saído de um parto natural. Não há marcas na cabeça e saiu à primeira, em pouco termpo, sem provocar dores maiores na mãe.

J. tem um ar feliz porque acabou de chegar. Para mim já é linda, uma princesa, um anjinho quando respira devagar e sem fazer barulho. Às vezes dá um gritinho que imediatamente cala com o aconchego de uma mão. Quando come não se queixa de nada e tem a boca bem presa nos mamilos da mãe, sugando o leite que a fará crescer e ter outras reacções.

Para já é uma bonequinha, com pouco mais de dois quilos e 56 centímentros de comprimento. Hoje estava de branco e rosa, com as meias a saírem-lhe dos pés, por tão grandes serem para 'tamanho' pezinho.

Eu estou babada. É a quarta vez que sou tia!

quarta-feira, setembro 20, 2006

Sal - as imagens



Estados d’Alma [v]

Insatisfeita.
Na pior das formas. Um sentimento difuso de descontentamento. O vazio. Sem respostas. Sem entender onde ou porquê começou. Apenas a certeza que [quase] nunca estou onde quero. E que nada sabe a nada.

domingo, setembro 17, 2006

Sal... mas que Festival!

Ainda voltarei a este blog com este assunto e com fotografias a certificar aquilo que agora escrevo. Para já ficam as palavras de emoções imediatas, de sentimentos de agora, de momentos há pouco vividos. Cabo Verde é surpreendente. Pela positiva!

É agora hora de almoço, por aqui, mas hoje acordei antes das sete da manhã. Objectivo: filmar o amanhecer no Festival de Santa Maria que terminou hoje, em grande festa. Pensei chegar lá e ver meia dúzia de resistentes a dançar, outros tantos deitados na areia, e a maioria já a curtir a ressaca. Enganei-me: às 8h da manhã, actuava uma banda de reggae e dançavam os cabo-verdianos em peso. E digo em peso porque, no Sal, estão muitos de Santiago, da Boavista, aqui em frente, de Santo Antão... Um cenário incrível, mesmo se tivermos em conta que mais de metade da população 'viva' estava ao sabor do alcool, da cerveja e do grogue. Uma surpresa vê-los a todos de braços no ar, passada uma noite sempre nesta posição, sempre com os ouvidos na luta da música, sempre com os pés a escorregar na areia, sempre com o líquido a escorrer pelas veias e, cá fora, pelo corpo, porque está quente em Santa Maria.

A sensação de estar no meio daquela alucinação é única. Única porque é um povo sem pressas, sem stress, como eles dizem, povo da morabeza... EStá tudo ali a curtir o momento de um domingo de manhã com a noite passada em claro. Praia cheia de garrafas, roupa perdida no chão, mulheres que deixaram que se passasse das marcas, homens que 'abusaram' dessas mulheres, casais que ali se fizeram, amores que se viram nascer... mas todos sorriem e têm um brilho nos olhos. Dizia o vocalista dos Alpha Blondy (a tal banda reggae): 'Cabo Verde pode acabar com pobreza se atingir a estabilidade política... e iremos todos para o céu porque Deus ama-nos'. A mensagem foi aplaudida. O cabo-verdiano acredita nesse Deus que é amor, e tem esperança nessa vida melhor.

Ontem, numa visita para filmar as salinas, dizia-me o taxista: 'eu não roubo. Já disse ao meu filho; um dia que não tenhamos nada para comer, abraçamo-nos e morremos juntos'. Não é de arrepiar?

E nós que somos tão racistas, aí em Lisboa.
É preciso vir aqui para saber o que é um cabo-verdiano, para lhes sentir o cheiro de um sorriso amável e de um aperto de mão.

quinta-feira, setembro 14, 2006

Ilha de Santiago - a espera

Sigo para o Sal mais à noite. Chove, em Cabo Verde, e as chuvas dos últimos dias deixaram tudo enlameado. Por aqui ninguém se importa: chinelo no pé e calções, manga de alças para as meninas e aquele castanho doce e cremoso, na pele.

A escala aqui em Santiago trouxe-me ao Centro Cultural da Cidade, Palácio Ildo Lobo. Vim com uma voz de cabo Verde, a Lura, e é ela que me traz a este arquipélago, para mais uma reportagem. Desta vez em dose dupla: para o canalinho e para o pasquim. Estou mais sossegada. Conheço estes ritmos e não me assustam. E até há meia de leite!

Soa a música local e cheira a gente. Não é um cheiro mau, de autocarro em hora de ponta, é um cheiro característico da terra. Eu é que sou a infiltrada.

Amanhã assisto ao Festival de Santa Maria do Sal. Dizem que dura madrugada fora. Vamos ver se o batuque me mantém acordada. Para já, uso este post para não desanimar. Faltam ainda 5 horas para apanhar o avião...

quarta-feira, setembro 13, 2006

O casamento 'sans papier'

Só existe uma razão para um dia ter desejado casar. Uma ‘pancada’ enorme por vestidos de noiva. Nunca o fiz. Pela simples razão que o compromisso que assumi numa noite no meu segundo andar direito em obras, não teve menos valor do que teria se fosse perante a lei. Ou no altar. Naquela noite também eu disse ‘sim’ quando me colocaram um anel no dedo. A ausência de testemunhas não retira valor ao acto.

Portanto, não houve vestido. Nem tremeliques. Nem festa de arromba. Mas houve um compromisso. Assumido desde o primeiro minuto. Tal como tu, acreditei seria 'para sempre’. A festa foi substituída por jantares e almoços com os amigos, divididos por afinidades. Depois veio tudo o resto de que falas. As bocas sobre o fim da ‘boa vida’. Os deveres. Os direitos. A pressão por causa das crianças. Os almoços em casa dos sogros [que nunca foram uma obrigação, mas isso o ganho de uma nova família].

Não quero fazer da minha história exemplo para as uniões de facto. Não quero generalizar. Mas também tu, Samantha, conheces outras relações que não poderiam ser levadas mais a sério se fossem de ‘papel passado’. O compromisso e a responsabilidade estão na forma como cada um encara a relação, mas acima de tudo no respeito pelo outro. Se existe alguma diferença entre o casamento e o ‘resto’, está talvez no momento da separação. No estigma do estado civil no bilhete de identidade. Na simplificação do processo. Que na verdade só é simples quando a casa, o carro, os sofás da sala, os candeeiros…, não foram comprados a dois. A minha questão é:

que legitimidade confiro eu [ou nós enquanto sociedade] ao Estado ou à Igreja para validarem os meus sentimentos por alguém?

se tenho com alguém uma relação estável, com quem partilho tudo – desde as contas bancárias, a família, o mais íntimo dos momentos –porque não posso chamar-lhe marido? Porque o Estado não o sancionou como tal?

o que vale mais, os sentimentos? ou um carimbo de uma qualquer repartição pública?

O Casamento 'comme il est'

Vem este post a propósito do anterior, escrito pela minha amiga Carrie que defende que, por ter vivido quatro anos com uma pessoa, esteve casada. Ora, eu não concordo nada com essa ideia e logo me apressei a dizer-lhe que não, não é a mesma coisa 'viver junto com' e 'casar com'.

Passo a explicar a minha teoria porque, nestas coisas, já se sabe, as opiniões divergem. Respeito todas as outras - inclusivé a da Carrie - mas esta minha ideia ninguém ma tira!

O casamento em si, o dia, não pode dizer-se 'vale o que vale'. Quem já passou por ele saberá do que falo. Os nervos à flor da pele, o medo de falhar, a certeza de se estar a tomar uma decisão certa, um formigueiro nos pés quando se sobe até ao altar - se fôr na Igreja - a emoção de ver a cara da outra pessoa quando nos juntamos no topo do tapete vermelho. O tremelique dos dedos a pôr a aliança, a voz trémula a gritar 'para sempre', os muitos olhares que nesse dia atraímos e o desespero que isso nos causa... todo um conjunto de emoções e de receios, de sentimentos que só quem casa pode ter. Quem se junta começa por dormir um dia em casa dela - ou vice-versa - ao segundo dia tem lá a escova de dentes, e depois lá decidem - com toda a responsabilidade, admito - trazer o resto dos trapinhos. No casamento não é assim, aos poucos: é tudo de uma vez! Há uma casa à espera, preparada para ser habitada, amigos e família a pressionar, toda a gente à espera dos bebés que vêm a seguir, todo o tipo de comentários negativos, como se a vida, a boa, terminasse ali: 'agora acabou-se', 'estás tramada', 'foste agarrado'... pérolas que quem vive junto não tem de gramar porque só confidencia o facto a dois ou três amigos e depois os outros vão descobrindo. Mais uma vez, não é tudo ao mesmo tempo.

E depois há a vivência. Quem casa acaba sempre por dizer 'não te casaste comigo? Já sabias como iria ser', acaba sempre por pensar que a separação é impossível 'porque estamos casados', acaba sempre por acreditar que 'o casamento é para toda a vida' e que o passo seguinte só pode ser ter filhos e almoçar em casa dos sogros. Quem vive junto não tem esta pressão familiar - a não ser a pergunta: porque é que vocês não casam? - não tem de deitar-se todos os dias com a pessoa que escolheu para toda a vida, com a plena consciência de que foi isso que um dia disse e foi nisso que um dia acreditou.

Na separação as coisas também são diferentes. Começa logo pela papelada, pelo peso que a palavra divórcio tem na nossa sociedade, pelo peso de ter, no BI, estado civil: Divorciado, pelo facto de passar a preencher papéis e perceber que se está num estado civil desagradável para todos, em vez de se ser apenas solteiro. E o dia do divórcio é horrível, e a ida à conservatória é um terror. Ao pé destas burocracias, a divisão dos bens - que acontece na separação - não é nada.

Eu sei do que falo, Carrie.
Talvez um dia me volte a juntar.
Casar, duvido.

Um dia...

... o T. olhou-me para a mão e disse que me casava aos 28 anos. Acertou. Hoje disse-me que ia ter tudo o que queria. Só tenho que me esforçar um ‘bocadinho’. Sem saber que raio é que quero, perguntei-lhe o que é que isso significa. Voltou a olhar. ‘Vais sair do País’. Alguma ida a Badajoz? Sorriu. ‘Não. Vais por muito tempo. E vais ganhar muito mais’. Alguém me diz para onde mando o CV, sff.

[A Samantha ligou-me a relembrar-me que nunca me casei. Mais casada do que aquilo é impossível]

terça-feira, setembro 12, 2006

[Desas]sossego

Tenho andado arredada destas andanças. Falta de tempo. De assunto. De paciência. É sempre mais fácil escrever quando estou triste. E hoje, continuando sem assunto, preocupa-me a vontade de vir aqui dizer qualquer coisa. Talvez seja por os dias estarem mais curtos. Por saber que, mais dia menos dia, volta o frio. E eu começo a sofrer por antecipação...

Branca de Neve e os Sete Anões

Naquele sábado levantou-se mais cedo para tomar banho e arranjar o cabelo. Era já fraco e todo branquinho, com uns acinzentados do último 'plix' que a cabeleireira lhe tinha deitado na cabeça. Foi penteada pela filha mais nova com um amor que transparecia no brilho do cabelo branco. Era um sábado especial. Era Verão, mas ia receber uma prenda de Natal. Era o dia em que, tal como prometido a 24 de Dezembro, todos os seus netos a levariam a passear. Não sabia para onde, quanto tempo, até quando. Sabia que tinha de estar pronta. E pronta, para ela, era de rolos já saídos do cabelo e com um casaquinho preto sobre os ombros, por cima da restante roupa negra que insistia em vestir.

Quando a campaínha soou desceu de malinha na mão, lenço e pente bem guardados, e umas moedas a tilintar na carteira. Estava muito bonita e até os olhos cinzentos pareciam mais claros por detrás das lentes usadas havia já vários anos. Tinha 91, muitos dos quais sem ver tudo como deve ser visto.

Entrou no carro do neto mais novo que já levava a mulher, neta emprestada nestas coisas de atenção e carinhos à avozinha, hoje feita Branca de Neve. A reunião com os restantes foi rápida. Eram sete, ao todo: quatro raparigas e três rapazes, sete espécies de anões, bem vista a idade que os diferenciava da avó.

O destino era próximo mas clássico. O objectivo era claro, mas particularmente delicado. Os sete netos queriam agradar à avozinha. Fazê-la sentir-se bem. Não lhe queriam ouvir as queixas do costume, antes evitá-las, impedir que as 'dores no corpo, na cabeça, em tudo', se transformassem num enorme sorriso por estar ali, rodeada, apaparicada, amada, acompanhada.

Os anões cumpriram o papel como ninguém. Branca de Neve passou muito tempo a sorrir e excusou-se a trabalhos pesados. Só tinha de dar o braço a este e aquele, aquela e aqueloutro... dividir-se por sete e sentir-se apoiada por outros tantos. Não custava nada. Tinha até os beijos de príncipes e princesas sem ter desmaiado a comer uma maçã. Estava radiante, radiosa, mais nova.

Os anões sabiam que seria de pouca dura a boa disposição da avó; que mais tarde ou mais cedo voltaria à solidão dos dias. Mas deram o seu melhor.

No final, viram-lhe as lágrimas a correr cara abaixo, desviadas nas rugas de uma velhice saudável mas por vontade própria, triste.

Mas hoje chorava de alegria.
Tinha todos os netos à volta e um presente de Natal inesquecível, naquele início de Setembro.

Eu também gostei.

segunda-feira, setembro 11, 2006

A cidade que nunca dorme


11092001



[Fotos do projecto Here is New York]

sexta-feira, setembro 08, 2006

Resultado de Insónias II

Brilhante.
Nigel Kennedy, o próprio, abriu-me a porta de casa e beijou-me a mão.

Cabelo no ar, espetado, rapado nos lados; t-shirt manhosa de uma banda qualquer britânica; uma meia de cada cor, calções e ténis.

A entrevista!
A ver, um destes dias, num canal perto de si.

Correu bem, portanto.

Elogio fúnebre*

Não é segredo para ninguém. Basta ler meia dúzia de prosas. Destas que aqui estão. Expostas aos olhares mais indiscretos. Penduradas ao sol como a roupa branca da aldeia. Uma verdade incontornável. Como a inconfidência dos meus olhos. Os meus maiores traidores. Dizem sempre o que sinto. O que penso. Choram de alegria. Mais facilmente do que de tristeza. Sou uma sentimental. É essa a verdade incontornável. E hoje voltei a senti-lo. Nunca pensei que fosse custar. Mas porra! São sete anos de vida. De convivência diária. De refúgio. De fuga. De encontro. De sorrisos. De lágrimas. De amanheceres. De solidão. De amizade. De descoberta. De calor. De percalços. De jornais amontoados. Tudo no espaço confinado de três portas. Foram milhares de quilómetros. Foi um vidro partido em Madrid. Um pneu furado na via do Infante às duas da manhã. Rallies pela serra. A partilha de momentos inesquecíveis. As idas a Santiago. As tardes em Sevilha. O frio na madrugada das Astúrias. Amanhã separo-me dele. Definitivamente. Há pouco, quando o ‘limpava’, senti um aperto no peito. Sei que o gajo está velho. Todo ‘partido’. Mas é meu. Foi meu desde o primeiro dia. E vai deixar saudades. O meu Clio.

[* Ou o fim do pesadelo sem ar condicionado.]

quinta-feira, setembro 07, 2006

Afectos [V]

Hoje vendia a alma ao diabo para poder adormecer no teu peito.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Primeira vez

Chegaram à casa desabitada há anos com uma chave na mão. Cheirava a mofo mas o sofá preto continuava no mesmo sítio, junto à janela, encostado à parede.
Ela vestia uma saia pelo joelho e uma camisa às riscas, um bocadinho clássica, um bocadinho menina; ele tinha os mesmos jeans de sempre e uma t-shirt que lhe acentuava os ombros.

Sabiam ao que iam. Mas era a primeira vez para ela, a primeira vez entre os dois.

Começou por desapertar-lhe a camisa das riscas, botão a botão, até aparecer um soutien prático, de algodão, cor de carmim, num peito apetitoso que parecia saltar de lá de dentro. Começou a beijá-la enquanto prosseguia no processo de 'desabotoação'... Ela fechou os olhos e deixou-se ir, nervosa, mas certa e confiante no que estava a acontecer. Tinha pensado naquele dia tantas vezes... e nunca o tinha imaginado assim, tão sereno, tão empolgante, tão fogoso, tão trèmulo...

A camisa saiu para o chão onde também jazia já a t-shirt dele, com uma inscrição qualquer nas costas. Motas ou o que era... O coração acelerou e o soutien soltou-se. Também foi arrancado para o chão, já a braguilha dele começava a ser desabotoada pelos dedos dela. Mãos pintadas de vermelho, mas púdicas, mãos doces e tacteantes, mas nervosas.

A saia saiu com a facilidade que lhe está destinada e ali estava ela, só de cuecas, as da cor do soutien porque nunca saia à rua sem um conjunto. E ele, duro, em cima dela, a percorrê-la com os beijos e com a língua, já com o suor a dar sinais de si, bafo quente e ofegante. Estava quase a chegar o momento.

Não se apressou e manteve-a vestida como a tinha então deixado, enquanto lhe descobria cada parte do corpo branco e sem mazelas, fino sem ser esqueléctico, suave, sem ser manteiga. Ela era perfeita - pensou - e tinha a certeza de amá-la mais do que já tinha amado uma outra pessoa. Por isso era melhor estar ali. Ela amava-o mais do que nunca. Sabia disso, sentia isso, provava isso.

Quando ele entrou dentro dela as cueecas foram apenas desviadas. Fê-lo com tanto carinho que ela teve tempo apenas para um ofegante 'ai', prolongado no momento e que lhes deu ainda mais prazer. Ela própria o desviou para se despir e continuar livre naquele acto de puro prazer. Lento, porque era uma primeira vez. Cuidado, porque era uma primeira vez.

Dormiram juntos, a seguir, sujos e sem preconceitos.
A primeira vez é feita de medos, até de dizer o que se sente, depois.
Quando acordaram entraram nos olhos um do outro e beijaram-se afectuosamente. Haveria mais vezes, sem dúvida, e tantas formas de o explorar.
Mas era amor. Já sabiam.

Insónia II

Seis e meia da manhã. O despertador só vai tocar daqui a uma hora mas já não consigo dormir. Já comi um pêssego e uma fatia de melancia, já voltei para a cama, já fui à casa de banho, já fiz tudo para voltar a dormir. Não consigo. Estou num estado de nervos tal, que não consigo.

Às 10 e meia estarei a embarcar para Londres com um repórter de imagem, para uma entrevista ao Nigel Kennedy. Eu, inculta, não sabia quem era o Nigel Kennedy e agora sei tudo sobre ele. Vou entrevistá-lo a casa, em Londres, a ele, ao virtuoso do violino, ao homem que faz de Vivaldi uma brincadeira de meninos, ao homem que deixa plateias de rastos de tanto saltar e pular... e estamos a falar de música clássica.

Kennedy tem agora um novo disco, com o selo da blue note, o que quer dizer que entrou no mundo do jazz. É um sonho antigo dele, uma espécie de libertação de criança, tocar jazz com o violino. Eu já ouvi o disco e é delicioso, com todos os acordes em sintonia, com o instrumento sábio a fazer os contornos da música, com a batida que lhe é conhecida a fazer levantar o pé.

Mas eu estou aterrada de medo por ir entrevistá-lo. Eu até já fiz entrevistas a tipos conhecidos como o Moby, ou o Malangatana, para falarmos em pesssoas diferentes, mas este Kennedy, que para além de violino gosta de futebol e é simpatizante do Aston Vila, está a deixar-me com os nervos em pé. Não sei se é por ser um prodígio naquilo que faz, se é por ser um inesperado, se é por ser uma mistura de tudo e uma figura que aprendi a respeitar em apenas três ou quatro dias. Nigel tem um estilo punk, mais de 50 anos (não sei exactamente quantos), e não usa laços nos concertos de música clássica. É um homem que destrói as barreiras e não segue a tradição. Como começar a entrevista? 'Hi Nigel, how old are you? because I tried to find everywhere...' Oh! You don't look so....' Isto resultaria numa mulher, mas ainda não sei como começar a entrevista com um tipo bem disposto a quem pouco importa perguntar 'o que tem a dizer sobre este último trabalho?', pois ele há-de arranjar maneira de mo dizer de forma original e sem pergunta directa...

Estou nervosa às seis da manhã. Perdi o sono.
Quando forem 10 vou estar cheia dele.
À hora da entrevista (17h) vou estar um caco.
E quando voltar a escrever neste blog o título será o caos....

A menos que tudo isto acalme e a entrevista seja um sucesso. O que também pode acontecer. Com os loucos e génios, tudo é possível...

segunda-feira, setembro 04, 2006

O aparelho

Sentou-se na minha mesa com o namorado. Era a mesa 'Londres', do casamento da M. com o M. Nenhum deles é meu amigo, mas ele, o noivo, é amigo do Rei, e eu lá fui, arrastada. Estava deslumbrante, é certo, mas de má vontade naquela festa que nada me dizia.

Eu já tinha reparado nela na Igreja, porque não parava quieta e porque, em vez de um chapéu, usava um penacho 'tipo' avestruz que lhe saía do topo da cabeça deixando, atrás, escorrer em rabo-de-cavalo uns longos cabelos negros. Pirosa, pensei.

Quando a vi na minha mesa sentei-me no lado oposto, já ciente de que não queria fazer conversa com ela. Nós éramos quatro, e havia mais um casal - que entrou mudo e saiu caldo - e três rapazes simpáticos. Um deles, de aparelho nos dentes, ficou ao lado dela. Coitado.

O estafermo que esta miúda era - nem sei o nome dela - também tinha aparelho nos dentes, mas o metal não a impedia de falar alto, rir às gargalhadas das suas próprias piadas, beijar o namorado de boca aberta, e mostrar-lhe os dentes, na expectativa de ele lhe encontrar um ou outro resto de sopa, um ou outro resto de hortaliça, um ou outro resto de framboesa, que fazia parte do doce. A comida era boa e o estafermo comeu de tudo, em quantidade, sempre sem se calar.

Falava dela... das experiências com o namorado que conhecia há seis anos mas que namorava há mês e meio - desejei-lhe sorte, a ele, e que não durasse outro tanto - falou do trabalho que tinha, e dos colegas, e do facto de estar a usar aparelho, e do casamento, e dos convidados, e de tudo e mais alguma coisa. A ponto de, o rapaz do lado ter alegado uma grande dor de cabeça para se ir embora. E eu, que pensava que eles eram íntimos - pois se ela não o largava - fiquei a saber que se tinham conhecido naquele preciso momento e que em comum tinham, apenas, o aparelho nos dentes! É dose!

Acalmou com o abandono do ouvinte lateral, mas não desistiu. Batia no namorado, chamava-lje nomes e impedia-o de falar sempre que ele tentava uma palavrita, abria muitos os braços e gesticulava para exprimir as ideias que não tinha.

Eu estive naquele casamento até ao partir do bolo. Pura obrigação. A M. e o M. estavam felizes e nem deram pela estaferma do aparelho. Sorte deles, que puderam ir dormir descansados, e resumiram-se a trocar com ela duas ou três palavras de circunstância.

Eu, que não bebi alcool, saí de lá enjoada. Enojada, farta.

Porque tem de haver um estafermo nos momemtos que se querem felizes para os outros? Eu até evito os casamentos... e se usasse aparelho tinha mais cuidado com a boca.

PS: isto não é um post contra os aparelhos, mas contra os estafermos.

domingo, setembro 03, 2006

A Adelaide

Desliga o rádio. Roda a chave para a posição inicial. Tenta novamente. As luzes no painel acendem-se. Do motor chega um ruído rouco. Um estertor de morte. Encosta-se para trás. Solta um suspiro, pronta a esperar. Lembra-se vagamente que não devia insistir com o acelerador. O motor pode morrer por afogamento. Pega num cigarro. Acendeu-o. Fica a olhar para a luz alaranjada da beata. Pensa nas alternativas. Ligar para o reboque vai sair-lhe caro. Não pode entrar em despesas extra. Ainda está a pagar a cirurgia. Olha orgulhosa para o decote generoso.

Percorre mentalmente a agenda de contactos. João. Casado. Tiago. A coisa não correu bem da última vez. Miguel. Mudou-se. André. Casado. Luís. Um chato. Jaime. Muito mau de cama. Ricardo. Casado. A extensa lista em riscos de se esgotar. Os homens casam-se cada vez hoje em dia. Sai mais barato que ter uma empregada. Eliminam as putas da lista de despesas. Segura a beata entre o polegar e o indicador. Atira-a pela janela. Volta a tentar. O Honda nunca a deixou ficar mal. Dá a volta à chave. Agora o silêncio é total. Raios! Devia ter trocado a bateria. Pega no telemóvel. Percorre o alfabeto. Tiago. Antes mau sexo do que ficar a noite inteira aqui parada. Marca o número. O telefone toca até entrar na caixa de mensagens. Foda-se! Tira a chave da ignição. Desiste.

O olhar percorre a rua vazia. Faz sinal a um táxi quando o telefone começa a tocar. Nuno G.? Pensa Adelaide, pensa! Ele pode ser o teu cavaleiro branco. Atende antes de perceber quem é. Ele quer ir beber um copo. Ela explica-lhe a situação. Ele oferece-lhe ajuda. Aceita, mesmo que continue sem conseguir dar um rosto à voz e ao nome. Volta a entrar no carro. Acende novo cigarro. Volta a esperar. Um Porsche pára ao seu lado. Ah! Afinal é este. Quando o carro começa a trabalhar, ele diz para o seguir. Rumam às Docas. No caminho falam da vida. Dos amigos que têm em comum.

Vão andando de bar em bar. Bebem shots de vodka. Às onze da noite estão os dois bem bebidos. Ele diz-lhe que deviam ir para um sítio mais calmo. Saem da confusão de rostos anónimos. Dirigem-se aos carros. Nenhum está em estado para conduzir. Mas não é isso que os impede de chegar ao destino. Pelo caminho ela pensa quando fui a última vez que fez a depilação. Tenta lembrar-se da lingerie que tem vestida. Param a poucos metros da casa dela. Começam a beijar-se mal saem do carro. Ele vai conduzindo aquela dança. Ela anda de costas. Confiante nos braços que a guiam. De repente tropeça numa garrafa caída mesmo a porta do prédio. Olha para baixo. É então que o vê.

Rafael? O que é que estás aqui a fazer? Mais pelo olhar do que pela garrafa caída percebe que ele já passou da conta. Os gestos lentos. A língua entaramelada. Tu disseste para eu aparecer. Ela olha-o furiosa. Três meses atrás dele. Nega atrás de nega. E agora é que ele vem?! Olha para o Nuno. Pede-lhe desculpa com o olhar. Ligo-te depois, responde-lhe antes de lhe virar as costas. Ela sabe que ele não vai ligar. Foda-se para este gajo. Já me lixou a noite. Ajuda-o a levantar. Mete a chave à porta. É então que ele diz. Tenho a mala no carro...

[Este post foi começado antes da Samantha ter ficado sem carro. Como a imaginação não é muita e tenho que me contentar com pequenos rasgos, não tive coragem de começar de novo.]

sábado, setembro 02, 2006

Conto[s] III

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Focos de luz sobre o palco acentuam a escuridão na plateia. Gente alinhada de pé. Ele abraça-a pela barriga. Faz subir ligeiramente a t-shirt colada à pele. A mão descansa a milímetros do cós das calças de ganga. Os dedos vão apalpando terreno. Ela não resiste. Aconchega-se nos seus braços. Sente o hálito quente no pescoço. A pele que se arrepia. Ele vai testando o seu pudor numa sala cheia de gente. Ela vira a cabeça. Quer dizer com o olhar que aqui não. Ele sussurra-lhe ao ouvido. Ouve a música. Os dedos ágeis desapertam o primeiro botão. Ela encolhe a barriga para lhe dar espaço. Sente os beijos no pescoço. Os dedos vão descendo mais e mais. Ela morde o lábio. Olhos fixos no vazio. Ao som de um suspiro que é quase um gemido, ele abraça-a. Ficam agarrados até ao fim do concerto.

[Este é, muito provavelmente, o meu último conto. Não quero correr o risco de me convidarem para escrever Sabrinas e Harlequins]

sexta-feira, setembro 01, 2006

A Reboque

As lágrimas ameaçavam saltar-lhe dos olhos quando meteu a chave na igninição. Nada. Tentou outra vez, nada. Deve ser da bateria. Deve ser. Entra e sai do carro, experimenta a tranca central, dá voltas e tenta abrir todas as portas. Avariado. Tudo avariado. O HDI mal estacionado num parque de estacionamento do Centro Comercial de Almada estava ali para não se mexer. Sinais de luzes, poucos, sinais de motor, zero... sinais de trânsito!

O primeiro que se aproximou dela era um negro, forte, chefe da recolha de lixo àquelas horas, porque já passava da meia-noite e tudo corria para fechar. Olhou para o vestido castanho que lhe acentuava o peito e teve pena dela. Vai lá, o Zé, leva uns cabos de bateria e ajuda a senhora.

A senhora agradeceu ao homem de peito inchado, branco do pólo colado ao corpo e mexeu-se nas sandálias de salto. Que merda, ali perdida, com um companheiro que percebia mais de Brecht que de válvulas; que até podia servir para entoar A Flauta Mágica de cor, mas que não saberia diferenciar o positivo e o negativo de uma bateria. Esperou pelo Zé.

Ele veio de carro próprio, desculpou-se com o patrão - que ele estava a ouvir tudo mas o patrão é que tinha de dar a deixa - e abriu o capot. Fio com fio, mais com mais, menos com menos. Nada. Um ligeiro choro do motor e nada no arranque. Prego a fundo e não havia vida naquele Peugeot azul, prenda de casamento há mais de quatro anos. Não é bateria. Não é.

Obrigada, senhor Zé. Num encolher de ombros lá foi o homem à vida dele, de caixotes do lixo e contentores para tratar a noite toda. Ela voltou ao intelectual que era o namorado e quase chorou. Ele sorriu e disse-lhe que sim, que era intelectual, e que isso até tinha piada, naquela altura, quando se espera de um homem um abanão, mãos na cintura, e cabeça dentro do motor. A cabeça dele é uma máquina, mas não entende as outras. Até a dela é complicada, às vezes.

Chamou o reboque. Chamou o irmão. Daqui a meia hora, disseram-lhe do reboque. Daqui a uma hora, disse-lhe o irmão. O irmão chegou primeiro e esperaram os três pelo reboque. Já passava das duas da manhã quando o homem chegou. Vinha sozinho.

Explicado o problema, já o vestido castanho se mostrava amarrotado com o cansaço, e o ar se fazia pesado na cabeça de cada um deles. O homem pôs mãos à obra. Boa. Pensaram... Mas depois pôs as mãos à cabeça... é que eu não estou muito habituado a este reboque... Ai não? Não, é um colega meu que anda com ele. Pois. E agora? Não se preocupe. Três da manhã. Três e meia. Àquela hora até o namorado intelectual já emputrrava o carro para cima do reboque.

O carro lá foi, a medo. Com o medo dela a persegui-lo de costas, luzes desligadas e frente ligeiramente levantada. Teria orgulho em ser deslocado? Foi para casa à boleia do irmão e ainda fizeram uns bons quilómetros. Cansados.

Quase 24 horas depois ainda não há diagnóstico. O carro vai ficar internado todo o fim-de-semana e ela já vestiu hoje umas calças de ganga. Há-de estar preparada para tudo. E pode levar o namorado na mesma.