A Capital
Este post vai ser longo, nostálgico e sentimental. Em suma, uma seca. Depois não digam que não avisei! (Ainda aí estão?)
Não foi n’A Capital que dei os primeiros passos no jornalismo, mas foi lá que o “bichinho” se entranhou. Que encontrou o seu espaço e se instalou cá dentro, sem apelo nem agravo.
Lembro-me bem do dia em que cheguei. Em pânico, confesso. Estive até às seis da tarde a ‘picar’ telexes da France Press (logo eu que sempre fugi do francês) e antes de sair perguntei ao J.C. se ainda precisava de ajuda (como se uma mísera estagiária como eu pudesse fazer a diferença): “Já que aqui estás bem podias ir a um leilão”. Era coisa importante. Ia à ‘praça’ um quadro da Paula Rego que poderia valer uma pequena fortuna. Problema? Eu tinha entrado às oito da manhã e o leilão era às nove da noite! Não tive outro remédio senão ir. Seria assim durante um ano e meio. Entrar às oito, sem nunca saber quando acabaria o dia.
Lembro-me particularmente de dois: um acabou com o J.C. a dizer-me que tinha uma hora para ir a casa fazer a mala e apanhar um comboio com destino a Saragoça. Quando regressei, dois dias depois (desta vez de avião!) tinha à minha espera uma comitiva de boas vindas com os recibos de ordenado na mão. A peça falava dos desgraçados dos portugueses que eram explorados na apanha do tomate em Espanha. Uns desgraçados, que feitas as contas, ganhavam mais do que nós!
Houve uma sexta-feira que acabou às oito da noite do dia à seguir, com uma passagem por Manteigas. Era uma história de maus-tratos infantis num lar de acolhimento. Uma freira que há anos que batia nas crianças. Para fazer a peça entrevistei uma miúda da minha idade (23 aninhos!), que tinha vivido no lar alguns anos antes. Contou-me como a freira lhe partira a cabeça com uma concha da sopa. A mesma sopa que a obrigou a comer quando o sangue começou a cair para dentro do prato. Fiz toda a entrevista com as lágrimas a correrem-me pela cara abaixo, com o R.D. do outro lado da sala a olhar para mim com ar de pânico. Lembro-me como me senti importante quando a manchete d’A Capital deu história nas televisões e mais ainda quando, dois dias depois, soube que “O anjo negro da guarda” (foi este o título da peça, do melhor!) tinha sido internada numa instituição de saúde mental.
Há também a história do Creoula, uma reportagem sobre os meus tormentos numa viagem de navegação costeira. Ainda hoje o J.M. jura a pés juntos que já na redacção, doze horas depois de ter saído do barco, me agarrei ao pilar que estava por detrás dele, como quem se segura para não continuar a balançar. Não era comum haver peças escritas na primeira pessoa, mas o P.T. (que Deus, ou qualquer outra força divina, o mantenha longe do meu caminho) achou tanta piada ao meu sofrimento que decidiu que a peça só poderia ser sobre isso mesmo. A verdade é que a história, lida sete anos depois, é exactamente aquilo que se pretendia: um enjoo.
E antes e depois dessas, as cheias no Alentejo, onde mais uma vez fui incapaz de conter as lágrimas. O Crime de Amarante. A leitura da sentença do Gang Multibanco e o medo que senti da multidão em fúria à porta do tribunal. As centenas de visitas às obras da Expo98. O incêndio numa fábrica de Alverca, com um jornalista da SIC a perguntar: “Afinal morreram quantos?”. Ainda ninguém sabia ao certo, mas ele insistia que se todos disséssemos o mesmo número, não ia haver problemas. As minhas primeiras autárquicas e uma viagem de Setúbal para Lisboa às duas da manhã.
A Festa do Avante (escrita a quatro mãos com o P.C, que se perdeu quando finalmente conseguimos colar o meu texto ao dele. Tivemos que refazer tudo de novo, enquanto o P.T. berrava da outra ponta da sala: “Fechem a p*** da página”). A Grande Noite do Fado (mais uma maratona de 36 horas e um verdadeiro estudo sociológico). O 13 de Maio em Fátima. As ‘Noivas de Santo António’ e as histórias de namoricos que tive que escrever. O dia dos casamentos, com a personagem que falta neste blog a acabar a noite a andar descalça na redacção, fartinha dos seus lindos sapatos pretos de salto alto. As Festas de Lisboa. A história da cadeira eléctrica que fritava os presos antes de os matar (mais uma das brilhantes! ideias do J.V.). A entrevista ao senhor que descobriu que a morte da princesa Diana estava escrita na Bíblia! Violações. Suicídios. Homicídios...
Além disso, há as pessoas. O velho A.S.M. que todos os dias lia a edição de fio a pavio e nos dava na cabeça sempre que encontrava uma incorrecção, uma gralha, uma vírgula que estivesse fora do sítio. O J.V. com as suas ideias mirabolantes só porque às 6 da manhã tinha visto uma qualquer notícia, numa qualquer televisão internacional. O J.C. a quem devo muito do que sou hoje, porque me atirou às feras sem me dar tempo sequer de pensar. A boa disposição generalizada do pessoal dos espectáculos com o R.T à cabeça. A insuportável, para além do imaginável, namorada do M.P. (o típico caso em que só se estraga uma casa). O J.M. com as suas gravatas inenarráveis e a mandar perdigotos para cima de toda a gente enquanto falava. O A.P. que nunca ia a lado nenhum sem cravar uma caneta, um pin, um boné... qualquer coisa servia. A antipática da D. Vitoria que geria o bar do andar de baixo. O P.C. que chegou lá como um puto porreiro e depois foi que se viu. E depois havia aquele tipo do internacional completamente passado, aquele que resolveu levar uma arma para a A.R. e achou estranho não o deixarem entrar. A P.F. sempre stressada a fumar como uma chaminé.
Sou, ou somos, do tempo em que A Capital tinha duas edições. Uma fechada à noite e outra que tinha que estar na rotativa ao meio-dia. Hoje queixo-me por escrever três mil caracteres por edição. Naqueles dias chegávamos a fazer a 2-3 (qualquer coisa como 16 mil caracteres?) entre as oito e as onze e meia. É certo que nos queixávamos. Dizíamos que não. Esperneávamos. Mas fazíamos. E a mim dava-me um gozo tremendo. É disso que mais me lembro. Do prazer enorme que era ir trabalhar todos os dias.
À Capital devo ainda algo muito mais importante. Foi A Capital que nos juntou, lembram-se?
À personagem que falta nesta ‘cidade sem sexo’ conheci-a no dia da entrevista. É provável que ela já não se lembre, mas descemos juntas no elevador e soube que ficaria a trabalhar na mesma secção que ela. À Vida é Muito Difícil já a conhecia de vista dos tempos da faculdade e tinha sobre ela a pior das opiniões. Não foi preciso muito tempo para perceber o quanto estava errada. A última a chegar foi a Miranda, mas essa já há muito tempo que fazia parte da minha vida. A Capital só nos reaproximou.
Não, A Capital não era o melhor jornal do mundo. Já o sabia quando lá trabalhei. Confirmei-o hoje ao rever os textos que fui buscar ao "baú". Além disso, A Capital que hoje fechou nada tinha a ver com o jornal onde eu trabalhei. Mesmo assim, acho mal!
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