sábado, dezembro 02, 2006

Assinatura

Dezembro tinha três dias quando ela chorou. Já tinha chorado um ano inteiro e, já se sabia, ia continuar a fazê-lo até que o tempo - essa desculpa para tudo e mais alguma coisa - passasse.

Naquela manhã de três de Dezembro acordou a chorar. Nem acordou de um sono profundo porque a noite tinha sido mortal, tinha sido tão terrível como uma guerra onde todos disparam contra uma mesma pessoa e descobrem depois que ela não é o inimigo. Mas então já está ela morta. Acordou desse enterro e vestiu a primeira coisa que encontrou.

Ia assinar os papéis.

Nunca uma assinatura lhe tinha custado tanto, aquele pequeno gatafunho que inventara para encurtar o trabalho de escrever.... Desejava agora ter uma assinatura interminável, que precisasse de dias ou talvez meses para terminar, para chegar à última letra. Que não se concluísse nunca, que não fosse verdadeira, que não fosse aceite, que não coincidisse com o bilhete de identidade.

Entrou no carro já com as lágrimas a percorrem-lhe o rosto. Umas atrás das outras. E soluçava. Não chovia torrencialmente mas, lá fora, a chuva ia e vinha e deixava os vidros do carro embaciados e molhados em gotas que desciam rapidamente. Não tão rápidas quanto as que lhe desciam na cara já gasta de tanto sofrer. As olheiras serviam de rampa e lá iam elas, grossas, duras, impenetráveis, impossíveis de secar.

Parou na rotunda onde tinham combinado encontrar-se. Ela, ele e uma advogada. Nunca precisara de uma advogada. E agora ali estava ela para garantir que tudo se fazia nos conformes, que tudo era executado até ao fim. O carro dele, mais alto, parou ao lado do dela e ele fez-lhe sinal para que avançassem. Seguiu-o como já o tinha seguido em tantas outras ocasiões, tinha-o perseguido, tinha-o procurado, tinha-lhe seguido o rasto, e agora limitava-se a marcar com os olhos aquela matrícula que há muito memorizara. Foi.

Encontraram-se num vão de escada, algures em Moscavide, num cartório ou num notário ou numa coisa qualquer que ela esquecera de propósito. A advogada levou os papéis lá para dentro, para lá daquele balcão minúsculo onde ele pagou a conta. A conta de um divórcio, como se lhe estivesse a oferecer um café e um pastel de nata. Cá fora falou com ele. Ainda as lágrimas não tinham parado de correr e ele, seco, nem olhava para ela: 'É mesmo isto que queres? - perguntou esperançada. A resposta foi afirmativa. Fez tudo para não soluçar.

Ouviu então chamarem pelos dois e entraram numa sala despida de beleza, de qualquer coisa que pudesse ficar na memória. Três mulheres, uma secretária de madeira e alguns papéis para assinar. Ela primeiro, ele depois. Perguntaram-lhe se era isso que queria. Ela continuava a chorar e as três mulheres tiveram pena dela. Disseram-lhe que podia não ser assim, que podia recuar, que podiam recuar. Ele quis que se avançasse. Ela disse que tinha de ser assim. Pois que fosse. Talvez tivessem caído lágrimas naqueles papéis que assinou a chorar. Ela não se lembra. Talvez tivessem ficado tão molhados que seria impossível ler-se neles os nomes de cada um, mas ela não se lembra. Sabia apenas que tinha assinado. Que um dia tinha escrito, por mão própria, o nome completo nuns papéis que preferia não ter lido. Na realidade não se lembra se os leu. Na altura só se lembrava de outros, assinandos dois anos antes, onde a promessa de 'para sempre' estava implícita.

As três mulheres levantaram-se e apertaram-lhe a mão. Ela saiu com ele e com a advogada, ela ainda a chorar. Não tinha parado desde que saíra da cama. Ele esqueceu-se dela e avançou, para depois voltar atrás e despedir-se. Deu-lhe um abraço sem ritmo, com pena mas sem arrependimento. Deixou-o ir. Teve ciúmes da advogada que partilhou o carro com ele. A aliança que ela usava e o os 20 anos a mais não tinham agora importância, para ela, naquela mulher que lhe levava para sempre o marido que tinha sido dela. Pobre mulher! Tinha sido apenas uma mediadora, mas ela nunca se esqueceria que lho levara.

Ele arrancou. Talvez tivesse passado por ela mas já chovia outra vez. Ela não se lembra se voltou a vê-lo. Por essa altura já gritava de dor, dentro do carro. E ninguém pôde socorrê-la. Ainda hoje assina com o mesmo gatafunho triste.

5 comentários:

DIV de divertida disse...

Quanta tristeza.........
agora me dei conta que há divórcios que sendo de mutuo consentimento não são de mutuo acordo...

no dia do meu divórcio, fui jantar fora com as amigas, tipo celebração!!! ehehe

acredita. as coisas hão-de melhorar. mas as dores custam...

Anónimo disse...

Ha divorcios amigaveis de magoa e frustaçao, Fevereiro tinha 3 dias, e chorei durante todo processo na sala de espera, na leitura, e no momento de assinar, chorei compulsivamente, fiquei a odiar a minha assinatura, tb gritei de dor no carro, e vi o carro dele afastar-se da minha vida. E ainda hoje assino com o mesmo gatafunho triste. Rô

Anónimo disse...

Choro contigo! Mas choro ainda mais por ele, pelo que perdeu. E mais ainda por não te ver encontrar a felicidade que tanto mereces. Beijo da 'afilhada' Manuela.

Anónimo disse...

Excelente descrição da destruição que constitui um divórcio.

Se aconteceu contigo Samantha, sinto muito. É realmente algo terrível.

Mas a crise gera o desenvolvimento!
Melhores dias virão!

Hang on,smile on!

JPS disse...

Eu fui um "Ele" e há 3 semanas ela não chorou. Já não... creio.

Sei que lhe fiz mal, mas ficar era fazer ainda pior. Por isso, dei por terminado esse ciclo de 10 anos.