Era sábado e já passava das seis da tarde. A minha reunião com a HSO foi breve e pouco houve para dizer. Era dia 4. Janeiro de 1997.
- Segunda, pode ser? Às 08H00.
- Ok.Cá estarei.
80 contos. Nem mais um tostão. Metade do que já tinha ganho, a recibos verdes, no emprego anterior.
Promessas? Um grande projecto, na altura do mesmo grupo da SIC, estação em progressão e com provas dadas na área da informação. E eu queria mesmo era abrir portas na SIC... pois se tinha acabado de sair de um canal perdedor. Nem a fé movia as montanhas de audiência do terceiro e novo canal.
Obrigações? De sol a sol. Entrada às 08h, no outro lado da cidade. Saída da primeira edição ao meio-dia. Duas horas de almoço - quase sempre passadas nas pizzas ou nos bifes do centro comercial dos Olivais... ainda não havia Parque das Nações - e o regresso até altas horas. Saíamos com as rotativas. Com o mesmo cansaço enrolado ao corpo.
Carrie era a minha admiradora número 1. Cada linha que eu escrevia era, para ela, uma espécie de arte das letras. Não esqueço o dia da reportagem da 'menina do cabelo em canudinhos'. Precisava de um transplante de medula. Fui lá a casa, algures na Amadora ou assim - lembro-me que era um daqueles bairros sociais com casas em frente à janela - e estive com ela na sala, no quarto. Com a mãe na cozinha. Um dia depois a fotografia dela estava na primeira página da edição matinal.
Outra vez... dolorosa... foi a que me levou ao Intendente ao longo de uns quantos dias. A freira - a da minha história é boa - espanhola que ensinava as prostitutas a fazer Arraiolos. Tapetes feitos por quem estava mais habituada a ser pisada. Fiquei tão emocionada que até fiz de conta que acreditava em todas as histórias. Elas eram todas antigas prostitutas, diziam. Não eram, na verdade. Mas sentiam que o seriam. Mais tarde ou mais cedo ficaria para trás, a vida escondida.
Quando a reportagem saiu tive uma das piores sensações da minha vida profissional. Havia uma delas a fazer o tal tapete. Linda, numa fotografia, só ela e as agulhas, no tapete. Acordámos pôr a fotografia com a cara tapada. Acordámos e foi o que pedi, a quem disso tratava na redacção. Quando abri o jornal e vi, naquelas páginas de uma tiragem considerável, a mesma cara que tinha confiado em mim no dia anterior... Destapada, como se a vida fosse toda contada naquele rosto a descoberto. Fiquei de rastos.
Soube pouco depois que tinha razões de sobra para assim ficar. O 'chulo' dela, o namorado como quis ela chamar-lhe, bateu-lhe. Espancou-a por aparecer assim, no jornal. Senti-me agredida, nesse dia. E nunca mais deixei por mãos alheias uma responsabilidade tão grande...
Guardo pouco, desse ano num jornal onde adjectivar as peças era trabalho de director. Mas guardo as três - comigo 4 - que mais tarde deram origem a um grupo 'Dumas' miúdas fantásticas, inseparáveis, sempre lá. Já agora, Carrie, não ia nada à bola contigo, também. Mania de 'cortar os pulsos' sem sequer arregaçar as mangas... Enervava-me, isso. Hoje, fico feliz por não teres conseguido afiar as navalhas.
Da Miranda já muito sabia. Dos tempos partilhados a aprender (?) a ser jornalista, numa Faculdade a saber tanto da matéria como eu de física quântica. O reforço foi chegando, na mesma proporção de umas quantas viagens de Lisboa a Cascais.
E à ausente deste blog, recordo-a de vestido branco. Sinal da pureza que ainda mantem. Só ela. Como mais nenhuma de nós.
A felicidade que espelhava no dia do meu adeus, naquele gabinete de directora e sub-directores que, no minuto da minha saída, consideraram-me 'fantástica, uma grande jornalista, a perder uma grande oportunidade' contracena com o que sinto agora, sabendo que o fim que eu desejei para mim chegou para outros, que não o queriam.
Não foi capital a existência de um jornal tornado sério com a evolução dos dias. Para cada uma de nós, afastadas desse projecto há tempo suficiente para não sentir mágoa foi, porém, um ponto de encontro. Um período para guardar no bloco-de-notas, certas de que não temos, nós, uma última página já escrita.