O poder das palavras*
Na era das comunicações mediáticas, no tempo dos telemóveis e do SMS, conheceram-se num mundo virtual. A empatia surgiu por um nome, que era também o nome de uma banda. Nunca foi capaz de se lembrar dessa primeira conversa: meia dúzia de caracteres trocados numa noite de insónia, que criaram nela uma lembrança doce e a vontade do reencontro.
Há coisas que é suposto acontecerem, que estão marcadas nas estrelas, que fazem parte do destino. Por estas ou por outras razões, voltaram a cruzar-se por breves momentos. Sem querer que o destino voltasse a decidir por eles, trocaram endereços. Estava selada uma amizade. Tímida ao início. Séria muito rapidamente.
Ainda hoje não sabe dizer o que a cativou. Sabe apenas que a personagem do outro lado do ecrã era uma espécie de alma gémea. Mas era coisa recatada. Ela estava cansada de relações e das ralações que traziam. Ele deixava-se levar por um namoro que deveria acabar em casamento. Aos poucos as mensagens electrónicas foram substituídas por longas conversas telefónicas. Ela servia-lhe de travesseiro. Ouvia-lhe as magóas. Os desencantos. As noites em claro. As ressacas. Ele? Ele era um homem que não pedia nada, só precisava de um ombro. Isso ela podia dar. Era feliz assim.
De repente o inevitável: dar um rosto aos caracteres, uma cara à voz. Ela aceitou o encontro a medo. Não o receiava. Só não queria perder o encantamento. Quando se encontraram cara a cara, junto ao rio, ela percebeu o que um velho amigo lhe costumava dizer com insistência: a verdadeira amizade entre um homem e uma mulher só pode acontecer se existir aversão física.
Um dia ele partiu. Namoro desfeito, queria ser homem. Conhecer o mundo. Ela foi ficando. A ausência substituida por cartas. Cartas a sério, escritas em papel. Envelopes entregues pelo senhor carteiro! Ela sentia-se uma miúda. Porque estas coisas só aconteciam quando era pequenina. Eram passado. Agora já ninguém escreve cartas.
Com o tempo foi crescendo a vontade de chegar a casa. As chaves emaranhadas na ânsia de abrir a caixa de correio. O envelope rasgado. Quase que parava de respirar enquanto sorvia cada palavra.Também ela partia de vez em quando. Escrevia-lhe longas cartas. Páginas e páginas cheias de letras. Palavras que contavam como era o mundo que via. O mundo que não podia partilhar com ele. Ele que de repente não lhe saía da cabeça.
Até um dia. Sentada na cama, onde sempre lia as cartas dele, as letras começaram a ficar desfocadas. As lágrimas que caíam sobre a folha de papel. Na amizade sincera, desinteressada, ele contava-lhe tudo. Até a aventura na noite cabo-verdiana. Falava-lhe de uma “cabrita” de olhos verdes. E as lágrimas que caíam sobre a folha de papel.
Levou meses e muitas outras cartas a perceber porquê. Disseram-lhe as borboletas que voaram aos milhares na barriga dela quando o voltou a ver. Confirmou-o na longa conversa de dois amigos que nunca deixaram de se encontrar, dia após dia. Só que agora já não eram só amigos. Apaixonara-se pelas palavras. E o homem que tinha à sua frente encaixava tão bem numa folha de papel...
*Tentativa mais ou menos (isto sou eu a ser simpática comigo própria) falhada de entrar na ficção que me apeteceu partilhar com vocês...
2 comentários:
Olha que leitores desnaturados que tu tens, minha querida, ninguém comentou... Tão bonito, tão bonito...
E revejo-me em tudo o que escreveste; eu também estou a ressacar de um amor literário, que era suposto ser virtual, zeros e uns, código binário ou linguagem html e depois foi bem real, escrevi uma história de amor com milhares de caracteres, escrevi-a com tanto fervor que acabei com uma tendinite de esforço na mão direita.
Beijos, muitos, e um bom Natal (estranho, desejar bom Natal num post de Agosto, mas, enfim...)
Delicodoce Dia
Eu (nós) não temos leitores desnaturados, simplesmente não temos leitores. O que ao contrário do que possa parecer até é bom.
Tinha duas leitoras fieis, que ainda que não escrevo me lêem atenciosamente e que depois comentavam ao telefone. Tinha duas, porque parece que nesta semana conquistei mais dois.
Ontem reli e achei o texto péssimo, mas encaixa tão bem no que estou a viver que não paro de pensar nele. Ainda bem que gostaste. Boa Natal para ti e para o diabinho de cabelos louros.
Enviar um comentário