Escrevo quando já todas as prendas foram desembrulhadas, quando já todas as crianças riram e choraram, e riram de novo; quando já todas as ceias se fizeram, quando já todas as famílias se uniram e separaram. Escrevo quando o Natal está quase no fim, quando já é quase dia 26, quando na televisão já se fazem balanços, quando as notícias já são do 'aconteceu' e não do 'vai acontecer'. Escrevo quando Jesus já nasceu, quando o Pai Natal já passou por todas - quase todas - as casas.
Houve tempos em que o Natal era, para mim, a grande quadra, tempo para ser feliz, para realizar, para pensar nos outros, para inventar emoções, para partilhar tudo e mais alguma coisa. Mas um dia o Natal veio, sorrateiro, e não me deixou senti-lo. Veio devagar e passou-me ao lado. E outro dia se fez um Natal assim, e mais outro.
Este ano preparei-me. Não quis deixar presentes para o fim e apressei-me a contemplar os que mais gosto. Não deixei que o espírito fosse só dos outros, e arrecadei um bocadinho para mim. Não muito, mas o suficiente para não deixar cairem as lágrimas que fizeram infelizes os Natais anteriores. Esperei por alguns sinais, que não vieram, inventei outros e criei fantasmas para depois afastá-los a chamar-me à realidade. Uma realidade que já é boa, que não é desastrosa, que, olhando para o lado, é bem melhor do que muitas que conheço e outras que vejo e não sei a quem pertencem. Mas sei que existem.
Não cantei os famosos cânticos que me acompanharam anos a fio, por esta altura. Ainda não fui capaz. Mas pedi, a quem acredito, um Natal melhor para todos. As lágrimas que verti vieram por causa dos mais pobres. Mesmo assim nada fiz para ajudá-los. Talvez isso me tenha deixado mais triste. Não mandei sms a ninguém. Peguei no telefone e marquei cada número, e falei com cada pessoa a quem quis desejar Bom Natal. Todas ficaram contentes por me ouvir, todas agradeceram o gesto personalizado, e eu a todas pude dizer coisas diferentes.
Na véspera de Natal montei um pequeno cabaz e levei-o a uma família de duas pessoas. Na véspera de Natal lanchei na FNAC do Fórum Almada como faço tantas vezes com o Rei que é agora meu, neste novo reino que construo devagar. Na véspera de Natal falei com os meus amigos, surpreendi os mais distantes, abracei a minha família. E recebi, com o mesmo amor com que dei. Sem os exageros que condeno. O essencial.
Esta manhã fui à missa da Paróquia onde cresci. Foi lá que tive um dos momentos mais fortes deste Natal. No fim, depois de o Padre - que me viu do altar - ter obrigado a plateia a uma salva de palmas para os que vão casar e para os que tiveram casamentos fracassados... um rapaz já sem dentes, esquizofrenia e cabelo despenteado ofereceu-me 4 chocolates mon chéri. Eu não gosto de chocolate, mas abracei-o e ainda agora as lágrimas quase me vêm ao olhos pelo gesto. Nunca fomos amigos, apesar de lhe ter ouvido muitas histórias, nunca nos sentimos próximos, apesar de sempre nos cumprimentarmos com um beijo... há muito que os votos de Feliz Natal não me caíam tão bem. Um gesto simples, num pacote tirado do bolso, desembrulhado, um presente que foi o mais lindo da quadra.
Escrevo já sozinha no meu Natal solitário que é sempre a noite de dia 25. Escrevo quando a família já foi, a mesa já se desfez, as crianças já se cansaram.
Escrevo quando ainda é Natal e em minha casa brilham as luzes numa árvore sem presépio.
Apesar de tudo, o meu Natal é o que representa o Nascimento. O de Cristo, quando acredito sempre num renascer que é também o meu.
Feliz Natal!