Emplastro
Chego a horas ao Centro Cultural Olga Cadaval, numa Sintra iluminada pelo Castelo à volta da Serra e um Palácio no alto que, só quem sabe, o vê amarelo e rosa doce. Sempre foi a minha vila. Ali perto ergui uma casa que nunca cheguei a habitar. Digo sempre que o meu casamento durou menos que a construção do que seria um lar. Lembro-me de tudo isto quando saio do IC19 e sigo o caminho que me levaria à Várzea. Mas fico-me pela vila das queijadas e da Periquita. Vou em trabalho e já se faz noite, num céu azul malhado a vermelho pelo pôr-do-sol. Entro sob autorização superior e deparo-me com mulheres bem vestidas, vestidos de seda, lenços esvoaçantes, sapatos de salto fino e um perfume no ar. São nove da noite mas cheira a amanhecer, no átrio do teatro municipal. Falo com o coreógrafo no meu português impecável, para ouvir castelhano numa resposta simpática e interessante, camisa de punhos largos, enfeitados, colar a deixar-se mirar por debaixo do decote em "V". É um artista. Segue-se a mulher, directora disto e daquilo, penteada nessa mesma tarde num cabeleireiro perto de si, um vestido cor de beringela e um peito saliente. Tem os olhos pintados e fica-lhe bem. É então, quando a puxo para a frente da câmara, que ele surge, nariz avermelhado, bochechas salientes, papo debaixo do queixo, fato igual a tantos outros e uma insígnia de vereador. Cola-se à mulher como um emplastro e espera que fale com ele como falarei com ela. Digo que não, que se separem, que prefiro assim. Pergunto-me porque quer aquele homem ser interrogado por mim se nada tenho para lhe perguntar, se sei que nada tem para me dizer. Estrago a memória a recordar o nome escutado enquanto senti aquele beijo molhado e interesseiro, o sorriso matreiro e o comentário "assim só se estraga uma parte do filme". Tem razão, mas não quero, ainda assim, dar-lhe essa oportunidade. Ela fala comigo e ele fica paralelo, pondo-se a par, a escutá-la, sem aparecer porque peço para não ficar na mira da objectiva. O poder político envolve-o e com ele os convivas que querem os tais beijos molhados e apertos de mão de conveniência. A minha entrevista termina na hora certa e toca o bombo, pancadinhas que só se tocam nas costas do vereador. Fujo para a sala que já escureceu e ocupo um lugar no topo. O Ballet Nacional de Espanha é fabuloso.
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