sexta-feira, maio 08, 2009

Estórias de Amor - A Faca

Naquela noite aventurara-se pelos subúrbios da cidade, rumo à casa que ele habitava com os pais, algures numa qualquer linha. A de Sintra. Não seria um prédio gigante, aquele, pois se nem tinha elevador... Saiu do comboio sozinha já a lua, comida de lado, estava bem alta. Mãos nos bolsos, mala a tiracolo mas bem presa no braço, passos rápidos rua acima à procura daquele número 37, um terceiro andar, direito. As varandas tinham sido fechadas pelos proprietários, alheios às leis camarárias. O arquitecto nem chegara a saber que ali nasceriam marquises. Já ninguém queria espaços abertos, vista de rua, só para o Verão. (Ela) Não se importou com os olhares, nem com os ruídos que atrás de si pareciam segui-la. Tinha agora 20 anos, e nenhuma vontade de viver. Ia pedir-lhe contas, dizer que estava tudo acabado, que não aguentava mais. A porta da escada estava aberta, ou não fosse aquele um bairro de gente conhecida - Porém, estouvada, descuidada. Subiu as escadas devagar, como se atrasasse o diálogo que a esperava acima. Sabia que ele estava só naquela noite de sexta-feira. Sabia que podia confrontá-lo a dois. Sem mais nada, mais ninguém. A porta abriu-se para deixar ver um roupão já russo, castanho claro (o chamado beje), com cinto de apertar à mão, barba por fazer e um comando de televisão no bolso. Parecia um filme americano: a imagem do homem que não interessa a ninguém, o desleixo, a desilusão. Seria fácil dizer ao que ia. Entrou. O discurso fluiu com a serenidade de uma mulher aperaltada diante de um homem sem estilo. Mas ele não a deixou acabar. Que não, que a amava, que teriam de continuar juntos, que não aceitava um não, muito menos uma despedida. Quis livrar-se dele. Sem pensar, correu porta fora e despediu-se com um nunca mais nos lábios rosados. Deixava-o em casa assim, de chinelos de dedo, sem marca, robe envelhecido, corpo mal tratado. Desprezível. Ele não terá notado, não terá assumido o espelho que ela quis então ser. Correu atrás dela. Os minutos que se seguiram fizeram lembrar um filme de terror, uma fuga à polícia, um assalto a um banco, uma corrida de estafetas, um lugar fugidio e uma vida para trás. Os chinelos seguiram-na, atravessaram ruas, calcorrearam passeios, correram, saltaram, nunca quiseram parar. Ele seguia sobre eles, qual Moisés sobre os mares, e abria caminho para apanhá-la. Pararam. Encostados a uma parede, gritaram. Sofreram. Estavam já longe de casa, mas perto de outras, onde vivia gente. À janela, uma mulher, desconhecida, faca na mão. Ameaçou-o. Que o matava se fizesse algum mal à miúda. Ela corou. Pois, se o amava... Os dois esconderam-se na noite e da mulher à janela da cozinha. Seguiram de mãos dadas, ele de chinelos, ela de sapatos. Calçado tão diferente que agora caminhava junto. Já não importava a aparência, àquela hora da vida.

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