dos dias bons
A C. insiste que a vida se resolve sozinha, repete-mo todos os dias, enquanto descemos a feira para voltar a subir logo a seguir, enquanto nos enchemos de sushi, enquanto trocamos mensagens compulsivas como adolescentes, enquanto bebemos um capuccino junto a uma janela de onde se vê a trovoada a rebentar no céu da cidade, quando lhe ligo a perguntar como está. Nos dias bons acho que a C. tem razão, que a vida se endireita, se apruma como quem alisa os vincos de uma peça de roupa, a vida alinha-se que nem livros numa prateleira ordenados por ordem alfabética e géneros, compõe-se como notas de música para uma peça de violino. Nos dias bons, em que o trabalho se multiplica, em que se escrevem-apagam-escrevem-apagam-escrevem caracteres a um ritmo alucinante, em que se enchem páginas de coisas fúteis transformadas em ‘pérolas’ a bem da nação, nos dias bons em que há sempre uma resposta do outro lado, em que o sol sobe a calçada e o cheiro dos jacarandás enche o Carmo, em que se trocam confidências e se discutem as vantagens e desvantagens do preservativo feminino, em que a vida não acaba à saída do pasquim e em que o melhor do dia é ainda uma promessa... e nos dias que se seguem aos dias bons, ao acordar com um cheiro que não está ali, que é apenas uma memória, é como se acordasse de um sono longo, é como se me abanassem para eu perceber, estremunhada, que o que está errado é o tempo que levo a consumir-me com o que não está nas minhas mãos. Nos dias bons penso que a C. tem razão. Que a vida se resolve sozinha.
2 comentários:
Resolve-se. Pode é demorar :-)
Sim, acaba sempre por se resolver.
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