Sinto que o tempo passa. Encontro pequenos apontamentos do ano passado, um bilhete de avião que é de Novembro e cujas milhas ainda não reclamei, um presente de aniversário que tem de ser gozado até Agosto. Acordo todas as manhãs sem ir ao ginásio que pago desde Janeiro. Prometi não falhar. Falhei. Disse ao recepcionista que não gostava de fazer ginástica, do ambiente dos ginásios, das aborrecidas mudanças de roupa... mas quem falha um compromisso que fica à porta de casa por quase 50 euros? Acordo e penso que é hoje que vou desistir, que vou rescindir, que deixo de pagar a mensalidade inútil. Desisto da ideia que me obrigaria a percorrer 200 metros. Corro para a garagem onde o carro sujo me espera. Penso que tenho de mandar lavá-lo, precisa de uma aspiração, as árvores do estacionamento diário deixam-no manchado e sem cor. E os pássaros. Não encontro o rapaz das lavagens e entro para mais um dia de loucos. Poupo 14 moedas e imagino um azul sem brilho, or mais uns dias. Nem sempre almoço. O telefone toca de minuto a minuto, ora fixo, ora móvel. E se saio em reportagem olho sempre para o relógio. Reparo, anoto, faço perguntas. Nem tive tempo para preparar o trabalho que me dá gozo. Regresso e conto os minutos para tudo o que ainda me falta fazer. Não telefono aos amigos, nem à família, não marco o dentista, os exames que me foram recomendados em Janeiro, falho por dois meses a segunda toma de uma vacina de 150 euros a dose. Não telefono ao banco para baixar o seguro automóvel, nem consigo lembrar-me de anular uma conta e dois cartões que continuam a ter anuidades exorbitantes. E não são usados. Passo tudo isso ao lado e prossigo na tarde até que seja demais. Quando finalmente faço logout corro para casa ansiosa por um sofá e jantar. Aqueço a sopa feita pela empregada à segunda-feira, o empadão que hei-de comer toda a semana, levo o tabuleiro comigo e divago em frente à televisão. Deixo uma nota no facebook e raramente respondo às interpelações. As redes sociais não me tornam mais humana. Vejo duas, três, quatro séries de seguida enquanto mastigo macias fatias de pão de ló. Penso nas calorias. Disfarço com um copo de leite e olho para o relógio enquanto espero um beijo de boa noite ao telefone. Podia ler, mas não consigo virar a página da minha vida. O meu dia acaba enroscada na cama, absorvida pelos pensamentos de tudo o que ficou por fazer. Felizmente tive breves minutos com a minha mãe. Agradeço por isso à rede móvel, que às vezes não interrompe chamadas. Não dispenso esses momentos carinhosos, de cuidado. Sei que a avó já dorme. Respiro fundo. Por vezes faço uma breve oração como que querendo convencer-me que acreditar continua a ser fácil. O sono tarda. Faço planos e imagino que tudo será diferente no dia seguinte, dedico-me a elencar o que me obrigarei a fazer, elaboro jogos para adormecer, alguns inventados na hora, como o que me desafia a escrever, mentalmente, nomes de capitais de A a Z. A minha mente corre e percorre Atenas, Brasília, Bruxelas, Genebra e Santiago do Chile. Muitas são-me desconhecidas mas gosto de imaginá-las. O jogo pretende adormecer-me mas desperta a minha atenção. Dedico-me então aos países, da Áustria à Bulgária, do Paquistão ao Zaire. Desisto de jogar contra mim própria e contra a minha vontade e admito que tenho sono, que devo dormir, repousar. Procuro aconchego na almofada que me ampara a alma mas, por estes dias, não tenho abraços nem conversas de ouvido. Cansada, perco-me na noite e sonho. Sonho até à manhã que me vê acordar de olheiras e memórias vivas de noites atribuladas. Porque a paz não está agora comigo.