As melhores, infelizmente as piores também, coisas da minha vida tendem a acontecer sem aviso. Como hoje. Um presente em forma de trabalho. Sem aviso, o que me obrigou a vir a casa trocar de sapatos. Ninguém faz reportagem, ainda por cima correndo o risco de ter de fugir à polícia ou a um bando de delinquentes armados de cocktail molotovs em cima de uns Fly de sete centímetros. Foi esse o presente. A bênção de voltar ao mundo real, longe dos meus gestores xpto, no meio de gente de carne e osso, com muitas histórias para contar.
Escolhi uma história e parti daí para todas as outras. Escolhi uma história com vista sobre Tróia, a partir de uma janela com grades, num café minúsculo, quatro mesas meio desconjuntadas, um televisor a preto e branco, sem som e com a imagem cheia de grão. A mulher que me atende chama-se Maria Baião, vou sabê-lo mais tarde quando perceber que desta vez a cara não se vai fechar, que haverá conversa para durar enquanto ali estiver. Não foi sequer preciso dizer ao que vou, mesmo que tenha entrado a pedir uma água, e mais um café, se faz favor, qualquer coisa para não ser de novo corrida sem direito a bom dia. Fala-se pouco na Bela Vista por estes dias, e quando se fala é a medo, num sussurro, e pouco ou nada se diz.
O café Pôr-do-Sol fica perdido no fim do bairro Azul e a cara marcada de Maria não deixa dúvidas que esta terá pouco tempo, e principalmente paciência, para se deixar encantar por tais poesias. Maria desfia o rosário dos dias naquele bairro social, mostra as fotografias antigas, do tempo em que as prateleiras estavam cheias, de quando os fregueses eram como amigos, toda a gente se conhece no bairro, somos todos tão unidos, somos uma família, vou ouvir mais do que uma vez. E logo a ela que leva duas décadas da Boa Vista, logo ela que nunca recusou uma ajudinha, que sempre vendeu fiado, que guarda em casa o livro das dívidas, páginas e páginas preenchidas com letras e números infantis de quem deixou a escola muito cedo. A mesma letra que usou para escrever o pedido de ajuda ao Presidente da República, à presidente da Junta, ela que só quer um aconchego para se manter à tona, para garantir um fundo de maneio que lhe permita voltar a encher as prateleiras como nos dias bons. A mesma letra redonda e infantil com que preenche as queixas contra desconhecidos, sempre contra desconhecidos, logo ela que tão bem lhes conhece a cara, que tantas vezes os atende logo no dia a seguir a mais um assalto. Maria desfia as dores da vida do bairro a par das suas próprias dores, contando como a polícia lhe entrou pela porta adentro, como lhe levou o ouro, a máquina fotográfica, o computador, as munições de uma arma calibre seis ponto qualquer coisa. Ela que não sabe porque foram entrar lá em casa, tudo o que tem ganhou com o próprio suor, com o trabalho de uma vida, logo ela e o marido, doente dos nervos, que não saem da Boa Vista porque só os negros aceitariam comprar o café e ela sabe que não são gente de ganhar a vinha honestamente, que aquilo só podia meter droga e ela com essas coisas não quer nada, o meu marido é um homem decente, não aceita essas coisas, repete, enquanto as lágrimas caem despudoradas pela cara a baixo por entre olhares recriminadores ao marido. Lê-se ali que a culpa é toda dele, por ela há muito que se tinha feito à vida, ela que queria ser cabeleira, que nunca quis fazer vida de balcão, cujos sonhos não se escreviam com chávenas de café lascadas, e açúcar servido de pacotes de quilo para dentro de taças a servir de açucareiro, sonhos que não se escreviam com caixas desabitadas para enfeitar as prateleiras, nem grades de cerveja vazias, sem uma única garrafa selada para contar a história. Fico ali muito tempo, sem olhar para o relógio, sem a certeza de encontrar outra história como aquela. A história de uma mulher sem medo, porque quem já perdeu tudo, quem diz e repete que já pensou no suicídio, não teme pelos bens materiais e ao marido pouco amor lhe tem, são assim as vidas que se vivem contrariadas, sem afectos, apenas por convenção, por falta de alternativa.
Volto aos pátios do bairro azul, uma fila de casas de cada lado, as paredes cobertas de grafittis, as janelas partidas, a roupa estendida. Há bancos no centro do pátio, uma árvore aqui, outra ali. Volto às ruas onde desfilam os polícias, passo acelerado, semblante carregado, corpos armadilhados de coletes à prova de bala. Volto às ruas quase despidas de gente, onde se desperta aos poucos muito depois do meio-dia. No café da Júlia, no meio do bairro Rosa, do outro lado da avenida, vou encontrar o Manuel, cabo-verdiano de sorriso fácil, de voz cantada, sem alegrias que acompanhem o linguajar das ilhas. Manuel está com dois mais velhos, os dois com menos de 60 anos, os dois reformados, os dois sem meios de subsistência, pelo menos que se confessem. O cabo-verdiano atrapalha-se no discurso, fala das obras, das fábricas, diz que agora está a estudar, desabafa que está desempregado. E nada lhe vale, no centro de emprego só arranjam trabalho a quem recebe o subsídio, um luxo que perdeu há muito. Diz que vive de biscates, quando aparecem, e lá vem o discurso da crise, que agora não há trabalho, mas que sempre se arranja alguma coisa. Deixo-os a queimar a tarde ao sol, deixo-os para entrar no café da Júlia onde se joga as cartas sem preconceitos raciais. Na mesma mesa, brancos, ciganos, negros. No bairro somos todos muito unidos, somos todos uma família, e ninguém fala, porque não se faz queixinhas, não se diz mal da família, pelo menos pela frente.
Ninguém dá a cara, ninguém diz o nome, esta gente não existe, não entra nas estatísticas, o bairro da Bela Vista parou em 2006 com uma taxa de desemprego muito alta, com um abandono escolar obsceno, mas ninguém diz que não vai à escola. Nem a cigana de 15 anos que embala nos braços o filho de dois meses da irmã pouco mais velha, que faltou estes dias às aulas por causa da confusão, por medo, medo do que não se vê pelo menos à luz do dia. O Manuel já avisou, está tudo calmo agora, porque eles estão a preparar-se para logo à noite. Nada farão se chover, foi isso que aconteceu no Domingo, já mo tinham dito à porta do centro social, cigarros acesos para acompanhar a conversa, criar empatia com a auxiliar de educação que gasta os últimos minutos da hora de almoço a olhar a carrinha do corpo de intervenção parada do outro lado da rua. Ela que foi a primeira miúda a ficar grávida no bairro, nunca ninguém tinha sido mãe tão cedo, ela com 15 anos a andar na boca do mundo, um mundo que se reduz a três bairros feitos de cor que o tempo esbateu. A empatia não chega para que a Becas diga o nome à jornalista, um nome ouvido no meio da conversa, a conversa que dura para além dos cigarros, onde há queixas contra a polícia, os homens de azul que dois dias antes obrigaram toda a gente do bairro a deitar-se no chão, até a Fátima, grávida de fim de tempo, se já se viu uma coisa destas, eles que façam o que têm a fazer, mas que perguntem primeiro, que tenham tento no cassetete, porque o bairro tem gente boa, não é só marginais, as pessoas trabalham, temos cá de tudo, enfermeiros, polícias, fisioterapeutas, a culpa é dos jornalistas, eles é que levam estas coisas para a televisão, só mostram o que querem, olhe o coitado do Jorge, a tareia que apanhou, o desgraçado que só foi a casa da mãe, buscar a marmita, e eu levei lá ontem a televisão e julga que mostraram alguma coisa?
O dia vai passando na Bela Vista, as ruas continuam vazias, mas o café da Júlia, no bairro Rosa, está cheio, prepara-se o fogareiro, vão assar-se febras para o lanche. Mais acima, no bairro Amarelo, os polícias continuam sitiados à porta da esquadra, dois carros do corpo de intervenção, muitos polícias armados até aos dentes, carros de giro atravessados no meio da rua cortada ao trânsito. As pessoas amontoam-se nas varandas dos prédios em frente, são boas imagens para os ‘bonecos’ que sairão impressas nas folhas salmão. No ar uma espécie de burburinho surdo, um presságio do que está para vir, uma tensão latente que não se explica, mas que se sente na pele.