quarta-feira, agosto 01, 2007

Regresso ao Divã VI

Esperou que ele acabasse a chamada num telemóvel topo de gama, talvez comprado com o dinheiro que lhe pagava todas as semanas. Estava já deitada no divã, cabeça encaixada na almofada, mãos sobre a barriga e os pés cruzados, lá em baixo. Tinha as pernas nuas, por ser Verão, e brilhava o verniz nos dedos dos pés. Pintara as unhas de carmim pela primeira vez, e ainda lhe custava olhar para a cor que sobressaía nas sandálias douradas, cor da moda.

Ele entrou e fechou a porta dupla: uma no exterior, que dava para a sala de espera; outra interior, que se fechava por dentro. As duas portas fechadas impediam a passagem do som para o outro lado, não permitiam que a voz dela se ouvisse para lá das paredes. Se chorasse, ninguém ouviria. Mas ela nunca chorava.

Ouviu-o sentar-se atrás dela, cruzar a perna e amarrotar uma folha de papel que deitou depois no lixo. Talvez um contacto, a história de alguém, os desabafos de um outro doente que entretanto tinha estado ali deitado, no mesmo divã. Não esperou pelo convite e começou a falar. Tinha tanto para lhe dizer... queria que ele soubesse que ela estava disposta a mudar, disposta a fazer um esforço, disposta a tudo para resolver o problema que a levava ali, semana após semana, mês após mês. Ele não a interrompeu. Ouviu-a calado, como sempre fazia quando a vontade do doente era apenas falar.

Ela mexia as mãos e acompanhava as palavras com o gesticular. Abanava as pernas devagar, sem deixar que a saia subisse acima do joelho, fixava os olhos nos pés pintados enquanto chinelava nervosa. Ficava sempre nervosa, naquele divã. E estava cansada desse nervosismo, cansada de estar ali, de repetir vezes sem conta as mesmas crises, as mesmas dores, o mesmo sofrimento. Por isso queria mudar. Queria ser outra pessoa, como se pudesse fazer uma total mudança de personalidade, um transplante de alma, uma operação plástica que a deixasse diferente. Mas não sabia se podia acreditar...

- E o que está a pensar fazer para mudar? - a voz dele pareceu-lhe fria, distante, talvez por não estar atento à energia que ela levava, talvez por também ele não acreditar. Ou talvez fosse apenas uma impressão dela. Na verdade era isso mesmo: ele não queria vê-la desistir, queria acompanhá-la, fazê-la acreditar, ajudá-la a seguir em frente sem que fosse necessária a tal operação plástica, sem que fosse preciso o transplante de alma. Ele queria que a mesma pessoa pensasse de uma maneira diferente. Só isso...

- Eu podia telefonar-lhe e dizer que quero falar com ele, esclarecer as coisas. - Para quê, perguntou ele. - Para ficar descansada, de consciência tranquila, certa de que fiz tudo o que era possível. E não fez? replicou ele. Pausa. Sim, tinha feito. Quantos telefonemas já tinha ela feito? Quantas tentativas, quantas conversas já tinha tido? Todas as possíveis. Disso, não havia dúvida.
Não sabia o que fazer. Se estava tudo feito... o que lhe restava? Pensou então que não podia fazer mais nada por ele. Estava na hora de fazer tudo por ela. Trocou a posição das pernas e reparou que o verniz estava já carcomido numa das unhas. Tinha de retocá-lo. Ficou calada à espera de uma resposta que poderia vir através dele, ou através dela. Às vezes acontecia, quando se calava, acontecia que as respostas lhe surgiam. O telefone dele voltou a tocar: 'desculpe' e atendeu em sussuro, levantando-se.

Ela ficou ali, só ela, naquele divã onde a voz que se ouvia ao longe falava baixinho. No telefone dela havia um número, na letra 'J' que gostaria de apagar. Mas tinha-o de cor. Nem precisava do cartão de memória. Pensou que podia apagá-lo dali, era um começo. Decidiu fazê-lo mal saísse dali. Ele desligou e voltou a sentar-se com um novo pedido de desculpas. - Vou manter na memória apenas o indispensável, disse ela. Vou guardar o que me fez feliz, o que ainda me faz feliz. Vou apagar lentamente tudo o resto, como se faz num cartão de telemóvel já cheio.

- E como fará isso, perguntou ele.

- Carrego no delete. Riu-se, era uma metáfora. Não - retorquiu - vou gravar novas memórias por cima dele. Substituo o nome dele por outro, por outros, tanto faz. Refaço os meus dias com coisas novas, com pessoas que já conheço e com outras que virei a conhecer. Preencho o meu cartão de forma a não caber mais nada. E quando tiver novas recordações, novas memórias, fixo-me nelas. Passam a ser passado recente.

Quando saiu o telefone dele voltou a tocar, mas ela já não o ouviu.

3 comentários:

LurdesMartins disse...

Eu já apaguei o número mas a memória atraiçoa-me... sei-o de cor! E porque não o esqueço eu?!?! Talvez precise disso mesmo, gravar novas memórias!

Beijinhos

a dona da gata disse...

Há números que também decorei, apesar de já não fazerem parte da minha agenda... e matrículas, e moradas, e não sei mais o quê... Mas começo a ocupar a cabeça com coisas novas. É que, mais tarde ou mais cedo, acredito eu, o que é antigo passará à história.

Fim de Partida disse...

Cheguei e fui ficando para me deliciar com os teus textos.