Ainda o divã...
Deitada, de barriga para cima, olhava o tecto em branco e perseguia os limites das paredes. Cheirava a mofo, ali dentro. Talvez porque a consulta dela fosse já a última do dia - já era noite cerrada - e o odor das pessoas se amontoasse na sala. Ela não gostava. Sempre que chegava substituia o guardanapo onde deitava a cabeça e não queria sentir o quente do corpo do paciente anterior.
Os outros doentes entravam e saíam sem olhar para ela. Nem boa dia, nem boa tarde. Teriam vergonha de assumir o divã? Ela sorria sempre que alguém passava e dizia aos amigos 'hoje vou ao médico dos malucos'. Sentia-se uma, às vezes. Não por causa da cabeça confusa - já se sentia muito melhor - mas porque continuava a ir. Já não tinha o que dizer e lá estava, agora quinzenalmente, no consultório do 11º andar.
'Hoje não tenho novidades, doutor'. Ele cofiava a barba e ficava à espera de mais. Ela ficava a olhar os tais pormenores na parede e no tecto e mantinha-se calada. Desistia quando pensava no dinheiro que aqueles 45 minutos lhe custavam. Então falava. Ocasionalmente falava do passado, mas era agora o presente o tema de conversa. Talvez por isso não tivesse o que dizer... o presente não a atormentava. Era praticamente feliz.
Raramente levava relógio e só sabia do fim da consulta pelas palavras dele. 'Então até para a semana'... 'Não, até daqui a quinze dias'... Sabia-lhe tão bem não voltar para a semana. Na verdade, saber-lhe-ia bem não voltar nunca mais. Mas o doutor era peremptório: 'Ainda não, ainda não está preparada'... Sentia naquelas palavras uma obrigação, e voltava.
O guardanapo de papel estava enrugado. Atirou-o para o lixo e pôs um novo sobre a almofada de veludo verde. Deitou-se de barriga para cima. Não tinha nada para dizer, e ainda lhe faltavam 45 minutos...
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