sexta-feira, julho 06, 2007

Cash Flow

Chegava ao princípio do mês e já não tinha dinheiro. O ordenado voava com as contas fixas para pagar... Pagava a casa, o carro, o empréstimo pessoal... Pagava os médicos, a gasolina e a via verde. Não sobrava grande coisa para as refeições fora de casa, e muito menos para os extras. Passavam-se meses sem que comprasse uma peça e roupa, ela que era uma devota dos centros comerciais. Só não os visitava ao domingo, porque não gostava de ver os casais com o fato de treino igual, quase sempre em tons de roxo.

Esperava pelo IRS e pelos subsídios de férias e de Natal como quem espera um filho. Ali ficava com o ventre em festa, às vezes preso na amargura, apertado, enquanto não caíam os euros na conta. Julho e Dezembro eram os meses maiores. Nessa altura desforrava-se. Pagava as contas e lá ia às compras, à procura de um trapinho, que tudo lhe ficava bem.

Juntava trocos para a depilação e para arranjar as unhas. Não dispensava nenhuma destas obrigações femininas. Mesmo de calças compridas gostava de ter as pernas limpas, sedosas, como via nos anúncios de televisão. E usava um creme todos os dias, para hidratar a pele. E as unhas, pintava-as de vermelho - carmim, para ser mais exacta - sempre com uma manicure brasileira porque lhe tinham dito que eram as melhores e que faziam milagres com mãos estragadas.

Este mês estava lisa. Andava a planear uma viagem e nem sabia como pagá-la. Tinha imaginado Nova Iorque mas nem as promoções estavam do lado dela. Optou pela Europa, uma coisa mais perto, também uma cidade grande, mas com História. Escolheu Madrid e já tinha as agendas de exposições do Prado e da Rainha Sofia. Também já sabia que espectáculos podia ver na noite espanhola, na movida. E sabia em que restaurantes comer. Só não sabia como pagar tanta coisa. Tinha descontos nos museus, mas só isso. Teria de desembolsar para tudo o resto. A viagem estava permanentemente adiada.

Chorava baixinho, à noite, em casa. Sozinha, com os extractos do banco na mão. Nem tinha um ordenado baixo, mas as despesas eram mais que muitas. Era uma descontrolada com os presentes para os amigos e cada aniversário tomava-lhe uma parte da carteira gasta pelo uso. E havia os jantares, com festa. Tudo caríssimo. Limpava as lágrimas com os soluços e punha-se a pensar no que podia fazer para ser aumentada. Nada. Já tinha feito tudo o que era viável fazer. A economia estava em crise e a Fundação onde trabalhava não dava dinheiro. Estava sem saída.

Tinha uma nota de 10 no bolso dos jeans. Ia tomar um café, naquela noite de Verão. Foi quando a viu: uma velhota sentada à beira de uma árvore no meio da cidade. Não lhe pediu nada. Tinha o olhar preso ao chão e lenço verde na cabeça. Não tinha frio, que a noite aquecera, mas os cartões ao lado indicavam a cama para a madrugada.

Voltou para casa sem ter bebido o café. Sorriu quando sentiu o bolso vazio. Estava mais rica e percebeu porquê.

No mês seguinte sobrou-lhe dinheiro.

7 comentários:

Maria Codfish - Diário de uma hipertensa disse...

Fizeste-me sorrir! :)

PedroNuno disse...

Samantha, LINDO.

Anónimo disse...

O vosso blog já há algum tempo faz parte das minhas visitas diárias. É sem dúvida um dos meus preferidos. Ao ler, por exemplo esta história, percebo perfeitamente porquê.

Mais uma vez, parabéns!

Anónimo disse...

Estou a fazer arrumações de 'Primavera'. Fiz uma pausa para vir ao(s) blog(s)

E... TANTA coisa que não preciso!

Maria disse...

Obrigada pela história Sam ^-^

Anónimo disse...

Passei por aqui por acaso foi o titulo Mais cidade do que sexo, que me aproximou pois eu em tempos quando criei o blog quis chamar-lhe o "senso"e a CIDALIA, nome de batismo, mas desisti e fiquei pelo nome neutro...palavras livres.
Quanto ao texto gostei muito, sou assistente social e vejo no texto muito mais que uma pessoa insatisfeita e uma sem abrigo.
Voltarei

LurdesMartins disse...

Que belo texto!