quinta-feira, julho 26, 2007

Regresso ao divã V

Entrou no elevador e suspirou. Ia voltar à sala com cheiro a mofo daquele 11º andar. Hesitou antes de carregar no botão mas, ao fechar da porta, não teve outro remédio: subiu.

Lá em cima o cumprimento de sempre: aquele aperto de mão mole do doutor, aquela mania de não agarrar a mão dela, talvez por prurido, talvez por hábito, talvez cansado de apertar tantas mãos, tantas dores, tantas almas cansadas.

Deitou-se e não proferiu palavra. Ele esperou. Esperava sempre; quando muito lançava um 'Então', mas mais nada, esperava que ela falasse... Mais uma vez, pensou nos 60 euros da consulta e no tempo que passava depressa.

- O meu pai não gosta do meu novo namorado.

- Então porquê?

- Acha que ele é indeciso, que não me levará a lado nenhum. Acha que será uma experiência frustrante.

- E você, o que acha?

- Acho que em parte o meu pai tem razão...

Desfiou então as dúvidas que não a deixavam dormir, que lhe assaltavam a noite transformadas em pesadelos. Ela gostava dele, sentia-se bem com ele. Ele tratava-a bem, como uma princesa. mas não chegava. Nem para ela, nem para o pai. Ela queria casar, queria ter filhos, já tinha passado os 30 e sentia-se atrasada no tempo, sentia os dias a passarem por ela, a idade a correr com pressa. Ele tinha 40. Mas estava expectante, apaixonado, mas sem pressa. Nunca agarrava a conversa do casal, muito menos a dos filhos, e sobre uma casa conjunta, nem pensar.

Falou durante 40 minutos. Pés cruzados no divã, cabeça sobre a almofada forrada a lenço de papel, aquele cheiro da sala fechada e, lá em baixo, o movimento da hora de ponta no centro da cidade. Trocou a posição dos pés duas ou três vezes e olhou para o relógio de soslaio - não gostava de ultrapassar o tempo da consulta por causa do doente seguinte, um homem magro que lhe sorria sentado à porta - mexia as mãos com avidez enquanto falava e dele, do doutor, nem uma palavra. Ouvia apenas o hum de concordância, pressentia um abanar de cabeça compreensivo, adivinhava um escrevinhar na mente que o doutor tinha boa memória.

- E o que pensa fazer com o seu namorado?

- Nada.

- Nada?

- Nada. O que devo eu fazer?

Silêncio. Cravou os olhos na parede branca, à sua frente.

- Resta-me esperar não é? É como se estivesse numa consulta consigo: eu falo sobre determinados assuntos e mais não consigo que uns huns de concordância, uns acenos de cabeça, um olhar de atenção. Então, falo mais e exponho as minhas dúvidas. Nem olho para ele para continuar a fazer de conta que estou aqui. E ganho coragem para expor mais, para dizer tudo, para falar de mim...

- O seu namorado não lhe dá conselhos, pois não? - Não. - Não a pressiona, não a quer convencer de nada. - Não. - O seu namorado quer apenas tempo.

- E quanto tempo devo aguentar a espera? É que estou a envelhecer... o meu pai tem razão.

- Talvez o seu pai pudesse fazer o mesmo que o seu namorado...

- Calar-se?

Nova pausa.

- Talvez o seu pai não gostasse que o seu namorado se apressasse. Talvez valha a pena esperar. E saberá sempre até quando esperar. É como se uma porta há muito fechada acabasse por abrir-se porque alguém encontrou a chave certa para a fechadura.

O relógio dobrou o último minuto dos 45. Estava terminada a consulta. Depois de mais um aperto de mão sem garra sorriu para o doente seguinte e ficou à espera do elevador. Esperou que ele parasse noutros andares até chegar a ela. O botão vermelho dizia que ele viria, que subiria. Não voltou a pressioná-lo.

Quando chegou o elevador abriu a porta.

3 comentários:

Carrie disse...

'porque alguém encontrou a chave certa para a fechadura'
mas ela sabe que há outras chaves, nao sabe?

[está cada vez melhor...]

Anónimo disse...

Bom, muito bom.
Para quando a antologia em Livro?
Eu comprava.

a dona da gata disse...

Não creio que alguma vez saia uma antologia... obrigada por gostarem.