quarta-feira, junho 28, 2006

A idade da inocência

Enrou no meu carro vestida de negro. Só deixava ver uma blusinha pintalgada a branco, a primeira que lhe vejo em anos, desde que a morte passou lá em casa. Entrou a lamentar as doenças, os ouvidos que tanto barulho fazem, as costas que não ficam direitas. Ajeitei-lhe o cinto de segurança e avançámos.

Destino: Sintra, a minha vila de eleição, e aquela que já me viu rir e chorar em iguais proporções. Ontem decidi voltar, guardada por alguém com experiência, alguém cujas lágrimas já só surgem em pesados momentos porque os olhos, de tudo já viram, e o coração de tudo já sentiu.

Arrisquei. O IC 19 fez-se sem pressas.

Mal chegámos, abriu-se-nos o mundo num Palácio de Seteais sem nuvens, com uma cobertura verde de deixar passar princesas - que o éramos, ali - e respirámos fundo. O andar vagaroso permitia a conversa, sussurada, porque ela não ouve, e eu não grito com ela. Encontrámos esta forma de comunicar.

Voltámos à vila já o cansaço lhe pesava nas pernas e a minha alma tinha percorrido uma década. Nada nos fez parar. O carro ficou no alto, o que nos obrigou a mergulhar nas ruelas onde turistas riem, o Brasil ouvia-se jogar e o artesanato enfeita o chão empedrado e escorregadio. Até que a noite caia. Claro que o destino era a Periquita, e um travesseiro para cada uma, recompensa pelo esforço de chegar ali: ela ao local eu, ao momento de vida, ali mesmo.

Regressámos gulosas. Não pareceu tão distante, o carro. Conversámos e evitámos as doenças e as mazelas de ambas. E o regresso fez-se em silêncio, até casa.

Foi mais um passeio com a minha avó, que me obrigou a receber os cinco euros do lanche, e que pensa que o que faço com ela é só por ela.

Não é.

Também o faço por mim. E faz-me bem.

4 comentários:

PedroNuno disse...

Lindo, Samantha!

Lipa disse...

É sempre poder-mos dar um pouco de nós a pessoas que também tem tanto para dar...
hà muita gente por aí que não se lembra que irá chegar a essa idade, ou então tem tanto medo disso que o melhor é ignorar que já tem essa idade, isso deixa-me triste!

LurdesMartins disse...

Devemo-nos permitir também pensar e fazer as coisas por nós! Bonita descrição do vosso passeio...

Anónimo disse...

Os ouvidos cansados da vida são o nosso destino. Mas a vida cansada de ouvir tudo e mais alguma coisa, isso, podemos mudar.
Samantha, és assumidamente uma graça de miúda. Foi bom ler a descrição do teu passeio, depois de saber que o ias fazer.
Obrigado, pelos teus ouvidos e pelos teus ensinamentos, no outro dia. Apesar do distanciamento (que eu provoca, às vezes) é bom saber-te na minha vida.
Beijos