quinta-feira, junho 29, 2006

A favor da despenalização. A favor do voto.

Se Sócrates cumprir o prometido, se Cavaco Silva lhe fizer a vontade, em Janeiro teremos novo referendo à interrupção voluntária da gravidez (IVG). O meu voto – obrigatório – é inquestionável. Tal como em 1998 votarei a favor da despenalização.

Não defendo o aborto. Defendo que as mulheres não devem ser julgadas em praça pública por aquilo que devia ser um direito. Àqueles que defendem o direito do feto, só posso dizer que a proibição de um aborto seguro viola os direitos da mulher à vida, à liberdade e à integridade física.

Não defendo o aborto como medida contraceptiva. Condeno quem se recusa a tomar a pílula ou a usar preservativos e depois, quando o mal está feito, resolve o problema com mais um ‘desmancho’, como se chamava no tempo dos meus pais. Acredito que os ‘azares’ acontecem. E que nenhum casal – sim, estamos a falar [idealmente] de uma decisão que deve ser conjunta, e recuso a ideia peregrina defendida, se não estou em erro, pela Ana Drago que ‘na minha barriga mando eu’ – deve ser obrigado a trazer ao mundo uma criança que não poderá criar com dignidade. Defender o direito à vida passa por recusar que haja crianças mal tratadas, evitar que existam ‘Vanessas’ ou ‘Joanas’. Defender o direito passa por criar condições de segurança económica, educativa e acima de tudo, por dar Amor.

Nunca tive que fazer um aborto. Não sei o que faria se me visse confrontada com essa situação. Mas conheço muitos casos. Há um que nunca me saíra da cabeça. Uma mulher na casa dos trinta, católica praticante, com duas filhas pequenas, a trabalhar ‘de sol a sol’, que no momento de decidir não teve dúvidas: antes educar, sustentar, criar duas crianças com dignidade, do que pôr no mundo uma terceira, correndo o risco de por em perigo o saudável desenvolvimento das duas que já existiam. E não me venham dizer que onde comem dois, comem três!

É verdade que antes de despenalizar a IVG era urgente pôr em prática políticas de planeamento familiar responsáveis. Educar mulheres e homens que despertam agora para a sua sexualidade, mas também mulheres e homens na idade adulta que nunca foram educados nas mais elementares regras de saúde pública, porque em última análise é disso que estamos a falar. O problema é que passaram oito anos desde o primeiro referendo e os abortos clandestinos continuam a acontecer. Diziam-me ontem que fazer um aborto em Portugal, com o mínimo de condições, custa em média 1.200 euros, em Espanha não ultrapassará os 300. Com a diferença de que as mulheres com capacidade para atravessar a fronteira trazem na bagagem medicação para uma recuperação eficaz.

Passaram oito anos desde o primeiro referendo. E gostava de saber o que fizeram durante este tempo os movimentos pró-vida para mudar as condições de acesso às consultas de planeamento familiar. O que fizeram para melhor as condições das crianças que nasceram sem que os pais pudessem assumir a sua educação e, principalmente, o seu sustento.

Não defendo que se repita o referendo as vezes que forem necessárias para que vença o ‘Sim’. Nem que os defensores do ‘Não’ venham depois exigir novos referendos. Defendo apenas que se cumpra a lei. Em 1998, o ‘Não’ ganhou com 50,07% dos votos. O ‘Sim’ teve 48.28%, com uma abstenção de 68,11%. Ora, a Constituição da República Portuguesa é clara: “O referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento”.

Faça-se um novo referendo, consciencializem-se mulheres e homens de que todos têm uma palavra a dizer. Evitem-se situações como as que aconteceram há oito anos em que mesas de voto não chegaram a abrir por falta de comparência dos elementos convocados. É preciso que as pessoas percebam que a decisão está nas suas mãos. Não se trata de escolher tecnocratas que vão decidir por nós, que legislam por nós. O que está em causa é uma matéria que mexe com a vida de cada um de nós. Cada voto – a favor ou contra – é imprescindível para que se cumpra a lei.

Faça-se um novo referendo. Pela minha parte, prometo respeitar qualquer resultado.

6 comentários:

Dia disse...

Como não me posso pronunciar acerca do tema, sob pena de ser levar pancada de todos os lados da blogoesfera, apenas quero dizer que a CRP é violada todos os dias. Queres que te envie um acórdão do Tribunal da relação de Lisboa para publicar? ;)
Parabéns por trazeres o assunto à baila. Qualquer que seja a nossa opinião acerca do assunto - e sobre este assunto, só há lugar para opiniões apaixonadas -, o importante é debater o problema.

Dia disse...

merda! está uma gralha na segunda linha... agora que estou noiva de um caça gralhas tenho que começar a reler o que escrevo...

Anónimo disse...

"É preciso que as pessoas percebam que a decisão está nas suas mãos"

Parece-me que a chegada do Verão te tornou (ainda) mais sonhadora.

Mas gostei de ler!

Beijos

lr disse...

"gostava de saber o que fizeram durante este tempo os movimentos pró-vida (???) para mudar as condições de acesso às consultas de planeamento familiar. O que fizeram para melhor as condições das crianças que nasceram sem que os pais pudessem assumir a sua educação e, principalmente, o seu sustento."

Fizeram um bocadinho de caridadezinha hipócrita, quando fizeram... e muita catequese... E ninguém tem vergonha na cara!
(hoje quase ninguém 'defende' o aborto; defende-se apenas que a lei seja cumprida, não seja um eufemismo, e quese reconheça às mulheres dignidade... só isso)

Anónimo disse...

"...porque se tem lançado a confusão sobre o fundo do problema, que não é o de saber quem é por ou contra o aborto, mas o de saber quem é pela adaptação da realidade jurídica à realidade social ou pela manutenção de uma lei que está em contradição com a vida e que a vida, na prática, já revogou.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de saber quem é pela verdade na lei ou pela persistência nela da mentira e da hipocrisia..." foi este conjunto de palavras que me lembrei de ter lido há pouco assim que li o teu post.
Grande texto!

Carrie disse...

Dia, há partes desse acórdão que são de facto memoráveis. E acabas de me dar uma ideia para outro post... temos que falar sobre o assunto. Escrevemos a quatro mãos, eu publico...

Meu querido moi meme, o Verão tornou-me mais apaixonada. Sonhadora sempre fui... É bom ter-te por cá.

LR, o teu comentário suscita-me muitas dúvidas. Talvez a minha ironia não esteja suficientemente aprimorada. Quanto ao resto... é exactamente isso que defendo. Que se cumpra a lei e que se protejam os direitos das mulheres, mas também das crianças. E os hipócritas que defendem o direito à vida deviam fazer qualquer coisa a favor das crianças invés de andarem a bater com a mão no peito...

C. não sei onde foste buscar a citação. Mas assino por baixo.