terça-feira, novembro 14, 2006

Solidão (I)

Abriu os olhos na escuridão e passou a mão na almofada do lado. Estava vazia. Como sempre estivera. Ela insistia em pôr lá aquela almofada, vestida com a fronha dos bordados rosa, a condizer com o lençol, discreto, que a mãe lhe fizera quando estava de licença de parto. Fechou outra vez os olhos e imaginou quem gostaria de ter ali ao lado... não lhe ocorreu ninguém. Estava num ponto de solidão que já nem sabia quem desejava ter por companhia. Pôs os pés no chão e enfiou os chinelos. Na cozinha fez pequeno-alomoço para um mas deixou, à frente da sua, uma segunda caneca pronta a fumegar de leite. Não a encheu para não desperdiçar. Mas pôs também uma colher e um guardanapo. Comeu a olhar para a loiça vermelha, polida, comprada nuns saldos de uma casa com anúncios para listas de casamento. Ela entrara para ver o que tinham os casados, em casa. E comprou umas coisas. Tudo aos pares. Mas entrou e saiu sozinha.

Já tinha tomado banho e escovado os dentes com a escova azul. Tinha uma verde para o caso de alguém, um dia, ir lá dormir a casa. Um homem, uma amiga, um familiar... qualquer pessoa que servisse de companhia naquele fase de tristeza profunda que atravessava. Nunca tinha sentido a falta de nada nem de ninguém. Fora escolha dela, viver sozinha. Mas agora, passados três anos, começava a sentir-se envelhecer e não há nada mais triste que envelhecer sozinho.

Saiu de casa aprumada. Estava sempre com as roupas e acessórios do ultimo grito da moda. Não tinha problemas com o dinheiro e tinha bom gosto, graças também a três anos que fizera do curso de arquitectura, antes de mudar a vida completamente ao contrário e entrar em engenharia do ambiente, no Técnico. Agora trabalhava para o Ministério e tinha bons contactos no Governo. Entrou no gabinete onde trabalhava sozinha e o seu 'Bom Dia' recebeu apenas uns sussurros de todos os que já estavam no 'open space' imediatamente antes do gabinete dela.

Passou o dia entre o computador e a sala de café. Não fumava mas não passava sem o expresso várias vezes ao dia. Quando a máquina avariava descia as escadas a correr e ía lá abaixo, à Dona Alice, um cafézinho de esquina que também servia fatias de bolo caseiro. Perdia-se, por lá, por isso preferia o café do gabinete.

Era sexta-feira. Não tinha planos para o fim-de-semana a não ser os do costume. Telefonar aos pais que viviam a 200 quilómetros e prometer-lhes uma visita para breve, ler o jornal na esplanada e dormir. À noite enrolava-se no sofá e via filmes. Uns atrás dos outros.

Era uma mulher interessante, inteligente e de boa conversa, quando tinha oportunidade. Mas afastara-se do mundo e o mundo esquecera-se dela. Os amigos achavam que ela estava sempre a trabalhar, a família já tinha esquecido o seu nome para os convites de almoços e jantares, os colegas tinham vidas próprias e mulheres, e maridos e filhos. Ela não.

Tinha-se interessado recentemente pelos blogues. Abrira um a que dera o nome de 'Loba Solitária', não era muito atractivo, mas tinha um belo lay-out, concebido pela potencial arquitecta. Aos 35 anos já não sabia mais que fazer para descrever os dias que passava em deserto. Por isso decidira escrever.

Um dia, começou assim: Sinto-me tão sozinha nesta vida...

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