sexta-feira, agosto 31, 2007

Saída de emergência

Olho para o relógio quando já passou a hora do almoço. Quando já fechou a mercearia, onde compramos água, fruta e coisas várias fora do prazo. Já fechou a mercearia. O Alcobaça nem chegou a abrir. E a preguiça de descer o Sacramento não me deixa levantar da cadeira. Olho para o relógio quando a hora do jantar é já uma miragem. Desço à garagem e pela primeira vez esta semana não oiço os números do euromilhões quando dou à chave. Têm sido assim todos os dias. Sempre o mesmo anúncio. A mesma gaja a repetir os números num altifalante de aeroporto. E todos os dias a sensação que aquilo é um sinal. Amanhã jogo. Entro no carro com a certeza que quando chegar os putos estarão a dormir. Que não terei um sorriso dos que fazem tudo valer a pena.

Acelero na Avenida enquanto faço ‘contas’ de cabeça. Penso que nada pode correr assim tão mal. Tem que haver uma explicação. Tem que haver uma fórmula para evitar tanta trapalhada. Isto não é vida. O caos não é vida. Pelo menos de forma permanente.

Penso que encontrei a Dia de passagem. Tentou contar-me, na janela de vizinha virtual, como ‘nada de extraordinário lhe acontece’. Na versão da Dia isto quer dizer que tem mil histórias para encaixar em posts. Gostava tanto que voltasse a escrever. Faz-me falta o ritual diário de lhe visitar o quintal antes de mais nada. Diz que tem a casa cheia de fantasmas. Sempre gostei dos fantasmas da Dia. E de repente percebo o quanto lhe sinto a falta. Das noites passadas à frente de uma garrafa de vinho e um maço de cigarros. Da esquizofrenia das conversas de adolescentes. Dos amores desencontrados. Até chegar o João. Tenho saudades da Dia, que mal vejo desde que casou. Culpa minha. Do trabalho que me consome os dias e a paciência.

E sem que dê por ela lá estão outra vez os cenários do caos. Como é possível não haver uma solução? Para já aproveito a luz de saída de emergência. E um casamento torna-se de repente no melhor programa de que me consigo lembrar[*]. Contento-te com um interregno de 48 horas. Domingo estou de volta. Mas amanhã vou para a praia. Ainda que só por umas horas. Ainda que arrisque um cancro de pele. E à noite bebo até cair.

[*]A minha imaginação é maior que isto. O meu nível de exigência também. Mas foi a única forma de me escapar num dia de semana.

terça-feira, agosto 28, 2007

Jardim Celestial

Quando era mais nova uma amiga disse-me que deus colhia, na Terra, as mais belas flores que queria ter no Céu. Por isso morriam as pessoas de quem gostávamos. Sempre quis acreditar nesta versão simples da morte... uma explicação singela que nos deixa com uma imagem bonita num momento em que tudo parece negro.

Hoje, uma amiga perdeu a mãe. De repente. Não consigo imaginar o sofrimento que ela agora tem. É demasiado duro ver uma mãe sofrer e, ao fim de três dias de uma profunda dor, deixar-se cair ao som das máquinas obrigadas a desligar-se porque acabou a esperança.

Quero pensar que a minha amiga perdeu a mãe por ela ser uma linda flor. E que no Céu, há um jardim imenso onde todas as plantas estão viçosas e onde há quem converse com elas. Para que cresçam felizes.

Agora algo realmente importante [ii]

Futebol? Qual futebol? Depois do Triatlo, nada como um bom triplo salto.

























[Nélson Évora, campeão do Mundo de Triplo Salto. Foto da Reuters]

segunda-feira, agosto 27, 2007

Piada de mau gosto

Tento. Faço os impossíveis. planeio tudo. E cruzo os dedos em frente aos lábios. Juro que não farei mais nada que seja ficar na praia de manhã à noite. Repito que pensarei apenas em mim. Que não existirá mais nada. Eu e o universo mágico das páginas de algum livro. Mas no fim nada acontece. Nos dois únicos dias que tenho para ir a praia, fica mau tempo. Rio para não chorar. O sol faltou à chamada. A pele não ficou a saber a sal. As toalhas não cheiram a protector solar. Não há areia entre as páginas do livro. Há apenas a sensação que nada sabe a nada. Que o Verão está no fim sem ter sequer começado. Nunca Agosto se arrastou tanto nas páginas do calendário. E eu penso aterrorizada que o Inverno está já ai.

[pior do que não ter tido direito a nada disto, é achar que consigo sentir tudo isto enquanto escrevo. A areia. O calor. Os cheiros. Sentir que as palavras são uma entidade física palpável]

sábado, agosto 25, 2007

Momento baby blog

O G. [4 anos] está sentado entre a A. e a televisão. No ecrã passa um anúncio de telemóveis. Não faço ideia qual é o operador. Vemos a câmara aproximar-se muito dos corpos nus e pintados a azul e laranja. Ninguém presta grande atenção até que o G. diz ‘olá’. Não é um ‘olá’ qualquer. Traz uma entoação de espanto. Eu olho para a A. depois para o R.. Desatamos os três a rir. É então que o G. se vira e diz ‘as miúdas’ com uma entoação no mínimo marota. Juro! E o R. jura que não lhe ensinou nada daquilo. Duvido...

quinta-feira, agosto 23, 2007

Noites Longas

Intercalamos perguntas e respostas na noite que se quer quente a cada Verão. Fumas um cigarro atrás do outro e sugas o fumo pausadamente à medida que medes cada palavra nos cartões coloridos. Já comprámos todos os jogos disponíveis e esgotam-se as respostas que desconhecemos. Continuamos a jogar. Encostados no sofá procuramos posições confortáveis e já estamos descalços. Sabe-me bem ter-te comigo. Contas as respostas certas que são mais tuas que minhas e eu esqueço-me delas. Tu não. Falho por não saber e sorrio. Respondo de qualquer maneira e ris-te. Se acerto ficas danado, como se pudesse vencer-te. Somas mais pontos. Não sei como será quando acabarem os cartões. Gosto de ficar ali, noite dentro, numa espécie de concurso de cultura geral onde não há prémio maior que a tua companhia. Tu podes ganhar o jogo, mas quem ganha a noite sou eu.

Post-it

Não juntar as palavras "brincar com" e "mete-lo todo lá dentro" na mesma frase, ainda que se esteja a falar de um título. Principalmente quando estamos a falar alto para a outra ponta da redacção.

quarta-feira, agosto 22, 2007

Cabeças Complicadas

Há pessoas - especialmente mulheres - que teimam em inventar problemas onde eles não existem, que não sabem viver sem um 'senão', que só se sentem bem quando alguma coisa corre mal. Porque quando tudo corre bem, desconfiam...

Estas pessoas dificilmente serão felizes - ou passarão por breves momentos de felicidade. São pessoas negativas, com uma perspectiva derrotista e que só conseguem ver um dos lados da balança. O que cai. Elas são assim por culpa delas, porque não se controlam, não se esforçam, porque desistem.

Por exemplo: uma pessoa arranja um namorado. Ele é carinhoso, atento, cuidadoso, cumpridor. Manda mensagens, telefona, espera por ela à porta de casa e nunca se atrasa. É um rapaz bem parecido, não fuma, não bebe em demasia, controla-se, sabe apreciar outras mulheres mas fá-lo de uma forma discreta e educada. Ainda assim, perante este romance, a 'nervosinha insatisfeita' acha que há qualquer coisa que não pode estar bem na relação. Provavelmente ele anda a enganá-la com tanta boa vontade, quer pregar-lhe uma partida e tem outra namorada, anda a perder tempo com ela só para se aproveitar... Mais: esta insuportável queixosa não aproveita os dias com o novo namorado, antes se esgota a pensar se será amanhã que ele acaba com ela... porque nada pode ser tão bom!

Outro caso: uma pessoa arranja um emprego. É bem paga, os colegos são gente simpática e cordial, os chefes são honestos e observadores. É elogiada quando faz bem, é incentivada, tem uma secretária e um computador só para ela... Mas a 'nervosinha insatisfeita' não está contente, claro. Para ela este só pode ser um emprego temporário, claro que os colegas estão a fazer bluff e, à primeira oportunidade, vão lixá-la; naturalmente os chefes não são observadores mas sim controladores. Porque nada pode ser tão bom!

Há pessoas que deviam consultar um psicólogo pelo menos uma vez por semana por causa disto. Deviam ter mais auto-confiança, deviam sentir-se seguras, deviam aproveitar o bem que a vida lhes traz. Mas, estas pessoas, insatisfeitas, preferem passar o tempo a pensar no lado mau de uma boa vida, preferem desperdiçá-lo com longas conversas sobre os malefícios da perfeição. Estas pessoas não merecem o bem que têm.

É que, já se sabe, de facto as coisas podem dar para o torto, mais dia, menos dia. Mas não aproveitá-las enquanto estão direitas é uma falta de amor à vida. E uma tremenda chatice para quem está ao lado.

terça-feira, agosto 21, 2007

[...]

Entrar no pasquim às 8h00, sair às22h depois de gastar pouco mais 20 minutos a almoçar diz muito sobre a minha vida. Ou a falta dela.

Uma e outra vez

Não há nada a fazer. Ao fim de dois dias, quando a semana ainda não vai a meio, quando faltam três edições para preparar e levar às bancas, estou pronta para baixar os braços e ir para casa. Dormir. Muito. Dormir e ficar horas a fio de livro na mão. Não pensar em nada. Não falar com ninguém. Enterrar os pés na areia. Torrar ao sol até as gotas de suor se acumularem no umbigo. Mergulhar lentamente num mar gelado e voltar para a toalha. Para ler mais. Torrar. Enterrar os pés na areia. Pronta para me embrenhar numa vida limite que não é minha. E quando esta acabar recomeçar. Há uma história de terroristas à minha espera. Não fazer mais nada. Alhear-me do mundo. Uma e outra vez.

Manhã de [des]gosto

Há vantagens em chegar ao pasquim quando as senhoras da limpeza ainda se arrastam de secretária em secretária. Ultrapassada a razão[*] que me leva a estar aqui a horas tão impróprias. E a caminho de recuperar o estado meio zen possibilitado pelo estado de sono e destruído em dois minutos de directo. Consigo voltar ao blog e pensar que talvez seja altura de libertar uns quantos drafts. Ocupam espaço e criam pó nas estantes do blogger. Pois. Mas para isso era preciso que conseguisse dar o salto. Há um que tem qualquer coisa como ano e meio. Nunca viu a luz do dia, pobrezito. Está pálido, magro, enfezado. E não há meio de conseguir pôr-se de pé. Falta-lhe um fim. A coisa começa bem, mas não acaba. Posso sempre optar pela versão cobarde. Não assumir nada. Aplicar-lhe com firmeza umas reticências. Deixar que os quatro ou cinco gajos que ainda aqui vêm decidam o resto. Podia transformá-lo num conto [semi] erótico. Daqueles que já se escreveram por aqui. Um elevador tem grandes potencialidades. Ou posso simplesmente deixá-lo ficar. Esperar Que morra de velhice. Que as traças o ataquem. Que se dissolva e escape entre os dedos ao mais sauve dos toques.

Mulheres ao Volante [ii]


Concedo que os números [estatísticas da Direcção Geral de Viação] são enviesados porque existem mais homens na estrada do que mulheres. Mas é indiscutível que são eles os principais causadores de acidentes. Acidentes causados muitas vezes por falta de civismo, o mesmo de que acusas as mulheres. Porque lhes salta a tampa se são ‘picados’ por uma mulher [ou homem] que conduz mais rápido que eles. É a velha teoria da ‘minha é maior que a tua’.

Não tenho pudor em dizer que me incluo na lista dos que buzinam e chamam ‘palhaço’ [na versão soft] ao condutor da frente, mas parece-me que a generalização peca. Como aliás todas as generalizações. Também concedo que tenho muitas vezes o que chamas de atitude de ‘chica esperto’. Sou capaz de ultrapassar uma fila inteira de carros para entrar muito mais à frente, mas sou incapaz de pedir que me deixem entrar, limito-me a aproveitar o facto de muita gente demorar duas horas, mais coisa menos coisa, a tirar o pé do travão e a pôr o carro em andamento. A distância que deixam do carro da frente é sempre mais que suficiente. E há que aproveitar oportunidades. Se não consigo entrar, acontece-me com frequência ao contornar a praça de Espanha, por exemplo, sigo em frente e vou pelas Amoreiras.

“Creio que a tendência da mulher é sentir-se diminuída em relação aos homens, no que toca à condução.” Importa-se de repetir? Ou de explicar? É que essa coisa dos complexos de inferioridade está mesmo a tirar-me do sério...

segunda-feira, agosto 20, 2007

Mulheres ao Volante

Sou mulher e tenho carta de condução. Isso não me impede de dizer que as mulheres são o sexo fraco ao volante. Não tem nada a ver com a capacidade ou a destreza na condução... é uma questão de educação, de civismo, de amabilidade.

Quantas mulheres deixam passar um carro à frente, numa fila? Muito poucas. Especialmente se for outra a mulher a conduzir o veículo que quer entrar. Quantas mulheres gostam de ser ultrapassadas? Pouquíssimas. E na Marginal é vê-las nos jipes lavadinhos a conduzir pela esquerda. Quantas mulheres acatam uma 'azelhice' sem bombardear o outro com buzinadelas ou sinais de luzes? Raras. E logo a seguir cometem elas uma 'gaffe'.

As mulheres até podem andar mais devagar, podem ser mais cuidadosas nas manobras, podem parar mais para dar passagem aos peões nas passadeiras... mas, quando se trata de amabilidade ou sensibilidade ao volante são autênticas camionistas, especialmente umas com as outras. É pena... e é triste. Mas é um facto.

Creio que a tendência da mulher é sentir-se diminuída em relação aos homens, no que toca à condução. Então, para compensar, não perdoam. E não perdoar não significa que tenham razão: muitas vezes não a têm. Mas, na cabeça delas, estão correctas e agem como se os outros fossem uns imbecis.

Eu prefiro andar com um homem ao volante. Salvo aqueles casos dos tipos que conduzem com bastões e paus gigantescos escondidos debaixo do banco, os homens são muito mais tolerantes, na estrada. E são cordiais, quando vêem uma mulher ao volante. E cuidadosos, quando percebem que é um carro que leva crianças. Só os taxistas estão fora desta categoria de condutores, mas esses são uma classe à parte.

As mulheres buzinam, gesticulam, chamam nomes e fazem asneiras com o dedo. As mais novas são terríveis com as condutoras do mesmo sexo e intolerantes com os mais velhos que ainda conduzem. São oportunistas, as chamadas 'chicas espertas'. As mais velhas não toleram a destreza das mais novas e têm complexos de inferioridade em relação aos homens. São de um tempo em que poucas mulheres tiravam a carta, e sentem-se as senhoras da estrada.

Regra geral, as mulheres são piores condutoras. São piores automobilistas, piores colegas de 'route'. Há excepções, como em tudo, mas são apenas excepções. As mulheres mais complicadas conduzem Audis e BMWs, ou outros carros topo de gama. Na maior parte dos casos a gasolina não é paga por elas, mas pelos ricos maridos que são importantes lá na empresa. Elas pegam no carro não para ir trabalhar, mas para ir buscar os miúdos ao colégio, para ir às compras, para dar um 'giro' e tratar de assuntos da casa. Não estão habituadas a horas de ponta. Não sabem quem tem prioridade numa rotunda.

Eu tenho carta há já alguns anos. Foi uma mulher que me fez o exame de condução e passei à primeira. Mas a minha atitude foi de humildade ao volante. Já me tinham avisado que ter uma instrutora era meio caminho andado para chumbar. E até podia raspar com o pneu no passeio para estacionar... desde que não me armasse em condutora experiente. É que as mulheres gostam mais de gente estúpida. E ao volante cada uma é a melhor condutora do mundo.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Fim de Férias - Parte I

Duas semanas depois, eis que me preparo para o regresso ao trabalho. Por incrível que pareça, sinto-lhe a falta: o burburinho da redacção, o galão com os jornais pela manhã, as dúvidas de toda a equipa, os alinhamentos abertos, os programas no ar... Ainda assim, venero as férias, este tempo de bem-estar onde as horas só passam a correr porque não olho para o relógio.

Gosto das férias. Gosto especialmente de dormir ao sol e de não ter horas para nada. Para mim, este período de descanso é feito de nada para fazer. Ou seja, sem responsabilidades, sem nada marcado, sem compromissos. Um tempo para mim e para os que a mim se querem juntar com este mesmo princípio. E há que aproveitar este ritmo, enquanto posso...

Esta semana fiquei por Lisboa: um dia dedicado à minha avó, mais outro para arrumações em casa, um para dormir à tarde, mais um para futilidades femininas... e assim passou a semana, com uma partida de Trivial por noite, até de madrugada, porque o dia seguinte não obriga a levantar cedo. E o House. Na Fox, todos os dias!

Está quase toda a gente fora: a família, os amigos, os conhecidos, os colegas de trabalho... Lisboa não está vazia, mas com menos gente. E sabe bem ter menos gente à volta. No entanto, a necessidade de comunicar, daí a visita ao blog. Para escrever nada, como se lê. Mas para quem está de férias (ainda) este post já é uma grande coisa.

Em Setembro regresso à boa vida.

segunda-feira, agosto 13, 2007

Sorrindo

- Meus senhores muito boa noite. É um prazer vê-los por aqui, porque é sinal que estamos todos bem. Desejo-lhes uma boa viagem até cascais e que nos possamos encontrar mais vezes porque é sinal que continuamos vivos. Eu não sou um doente de sida nem tenho quatro filhos para alimentar. Sou apenas um sem abrigo. Podia roubar para ganhar dinheiro, ganhava mais de certeza. Mas depois a polícia vinha a correr atrás de mim e, como eu já não corro muito, se calhar não me compensava. Por isso, decidi vender acendedores eléctricos para o fogão e....

Não sei quantos anos tinha, uns 50 talvez mas a idade de um sem abrigo é difícil de calcular. Os acendedores, em forma de fósforo, eram engraçados, mas na verdade não preciso de nada do género. Mas achei-lhe piada. Tinha pago o bilhete de comboio e estava a fazer pela vida, cheio de nove horas e excelentíssimos senhores. Um empreendedor.

Hesitei, mas lá acabei por decidir que se não lhe dava negócio, pelo menos um sorriso ele tinha conquistado com tanta lábia. Quando passou por mim, lá lhe sorri. E ele, feliz, até me mostrou os dentes.

Não sei qual de nós terá ficado mais contente. Mas agora que penso nisso percebo que, pelo menos um de nós, não irá hoje dormir em cima de um cartão. Será que o meu sorriso o vai ajudar a aquecer?

domingo, agosto 12, 2007

Sao Miguel - o adeus

Fim da primeira parte. Até breve, São Miguel.

Na memória o excelente dia de praia, ontem, na praia de Água d'Alto: um céu completamente descoberto, sol até às oito da noite e um mar quente, calmo, perfeito para relaxar.

Na memória, também a festa da noite, mas por razões diferentes... não sei se pelas vestes pirosas de algumas das convidadas (de tule e saltos agulha numa festa de jardim), se pela música inacreditável num ambiente que se queria frick (alguém cantava o Senhor Santo Cristo dos Milagres no intervalo das anedotas); se pelo desfile de cortes de cabelo - arrepiante - a que algumas convivas se expuseram porque a dona da casa é dona de um salão de cabeleireiro... Um horror durante umas três horas. Amizade oblige!

Obrigada R. Pela casa (com cama, mesa e roupa lavada), pela companhia, pela boa disposição, pela disponibilidade.
Voltarei!

sábado, agosto 11, 2007

Regresso ao Divã VII

Tinha faltado à sessão anterior por achar que já não precisava daquilo. Enganara-se: os dias tinham voltado a enevoar-se com as histórias do antigamente, de um tempo em que ela não sabia distinguir felicidade, de infelicidade. Sentou-se no divã de perna trocada e aguardou que ele fechasse a porta. 'Desculpe a ausência da semana passada. E nem avisei. Pensava que estava melhor...' Ele murmurou qualquer coisa como se nunca a culpasse de nada e sentou-se no sofá atrás dela.

Deitou-se e manteve as pernas cruzadas no divã. 'Pensei que estava melhor', repetiu. 'Mas não, voltou tudo ao mesmo; as recordações, o passado, os dias infelizes...' Não sabia mais como explicar aquela sensação de perda, de desgosto, uma tristeza profunda que lhe vinha desde há meses e que insistia em ficar. Pensou no último mês e na forma como tinha recuperado, como quase tinha esquecido as mazelas, como quase tinha contornado a dor. Pensou nas manhãs desafogadas, nos olhos que abriam melhor, nos passeios ao fim do dia, nos sorrisos que já partilhava. Trocou as pernas no divã.

Sabia que tinha regredido naquele mal que muitos juravam ser uma doença: depressão. Que raio de doença era aquela que aparecia sazonalmente nos artigos das revistas do cabeleireiro? Ela sempre soubera dominar os humores, sempre fora bem-disposta, sempre se sentira capaz de superar os problemas. Mas agora, não. Estava agora presa à depressão, um sofrimento atroz que a deixava de rastos, que a impedia de falar, que a deixava horas na cama, que a fazia sofrer. E saborear a dor.

Ele trauteava qualquer coisa na perna direita, talvez uma música que ouvira na rádio quando vinha para o consultório, talvez um compasso inventado naquele momento. Ela suspirou e tomou novo fôlego para continuar a falar. Desabafou. Ali era o único sítio onde podia voltar a falar sobre tudo, onde não lhe cobravam nada, onde ninguém se admirava que ela falasse sempre do mesmo assunto. Lá fora, entre amigos e família, já todos estavam cansados, poucos compreendiam o desgaste e o prolongamento do problema. Já era tempo de ela esquecer aquilo tudo, caramba! Mas ela sabia que não era suficiente o tempo que passa. E ele percebia porquê... então, ela desabafava.

Na semana seguinte também não faltou.

sexta-feira, agosto 10, 2007

São Miguel III

Passo a tarde na piscina da casa que me acolhe sempe que venho a São Miguel. Fico a boiar duas horas deixando-me levar pelo vento e pela água que empurra o colchão de ar para cá e para lá. A R. traz-me um sumo de laranja e ameixas frescas e não tiro o rabo da água. Melhor é difícil...

Dormi mal, esta noite. Não terá sido do jantar petiscado ontem à noite no ala bote, na Ribeira Grande: camarões e lapas com pão carregado a manteiga e, ao fundo, um pôr-do-sol magnifíco, com aqueles raios que batem no mar e deixam antever a existência de Deus. A noite mal dormida faz-me acordar com aquelas dores de cabeça. Nada de novo. Rebolo-me na cama a tentar que os sonhos sejam melhores mas não, agarro sempre na ponta do pesadelo anterior e ali fico, a remoer, a castigar-me com pensamentos nocturnos que já pouco me assolam de dia. Partidas que o sono nos prega...

O céu raramente está completamente azul. As nuvens vão e vêm, passam pelo astro maior e tapam-no por instantes. Então, são sopradas pelo vento e lá chega um pouco de Verão. Gosto de São Miguel.

Cansaço

As noites têm sido um prolongamento dos dias. Só por isso não estranho quando o despertador toca a meio de uma reunião. Ou se acordo enquanto discuto com algum dos jornalistas da secção o melhor lead. Se rabisco numa folha de rascunho o que será o desenho de uma página enquanto me viro na cama, com os primeiros raios de sol a entrar na janela. Menos ainda se o R. se queixa porque passei a noite a mandá-lo sacar fotos da Reuters. Por uma noite gostava de sonhar com outra coisa.Será pedir muito?

quinta-feira, agosto 09, 2007

Saudade

Fecho os olhos e penso em ti. Vou no carro e penso em ti. Sento-me à mesa e penso em ti. Mergulho nas ondas e penso em ti.

Estamos a um mar de distância e nem as três vezes diárias que te oiço ao telefone parecem ser suficientes. Fazes aquela tua voz meiga, quase infantil, e eu sorrio, deste lado. Fico assim quieta a ouvir e deixo que saia um risinho nervoso. Então, passo a mão pelo cabelo e entorto a cabeça num gesto de menina. E lá estás tu, a tua voz doce, o teu ar terno que me faz continuar a pensar em ti.

Gostava que estivesses comigo. Não a todos os minutos, não em todos os momentos. Apenas naqueles que posso partilhar contigo, que gostarias de partilhar comigo. Sinto a tua falta deste lado do mar. Dizem que é saudade...

Dias de alma vazia

O que não tem remédio… por isso não vale a pena falar. Conversar. Argumentar. Há dias assim, de alma vazia. Aqueles em que preciso de silêncio. De colo sem pedir. De abraços e festas na cabeça. Porque os dias se encarrilam uns atrás dos outros. Sem sobressaltos. Sem cor. Dias mortiços como a luz das manhãs de Inverno. Sem o arrebatamento que faz as grandes [à proporção] histórias. Não sei explicar e não sei reagir. É dormir até que passe.

Namoradodependência

Há pessoas que não sabem viver sem um namorado. Não conseguem estar sozinhas e, mal saem de um, entram noutro. Sentem-se desgostosas e desgostadas, abandonadas, não conseguem arranjar programa e acabam por fazer tudo para ter um novo relacionamento. Homens e mulheres, tanto faz. Há pessoas assim.

Não ter um namorado implica saber viver. Não digo que seja fácil desabituarmo-nos de uma relação de anos para passarmos à solidão absoluta. Mas aí é que está a questão: não tem de ser uma solidão absoluta. Não ter alguém dito 'especial' não quer dizer que se está sozinho. Quer apenas dizer que... não se tem um namorado. E há os outros, a família, os amigos, os conhecidos... todos fazem parte da nossa vida desde que não os abandonemos por completo no dia em que... temos um namorado.

Muitas relações vivem para dentro. Vive ela para ele e ele para ela. Não têm amigos que não os comuns, não saem de casa à noite, nem ao fim-de-semana a menos que seja para estarem juntos; não vão a nenhum sítio um sem o outro. Assim, todos se habituam a vê-los num só, mas não aquele 'um' de que falam os sacerdotes no dia do casamento... é um 'um' negativo, isolado, egoísta. É um 'um' sem sentido. Porém, deixam de ser cada um, para ser apenas 'um'. Com tudo o que isso traz de mau.

Conheci um casal que viveu assim 9 anos. Ao fim desse tempo, e já com casamento marcado, desistiram um do outro. Aliás, não desistiram: ela, não desistindo dele, interessou-se por um terceiro, e queria acumular. Ele renasceu no dia em que percebeu isso, e deixou de ser aquele 'um' miserável que tinha sido durante quase uma década. A partir desse dia ele viu-se sozinho. Valeu-lhe a família e um ou dois amigos chegados que não tinham desistido dele. E foi vê-lo levantar-se, devagarinho, até perceber que tipo de pessoa era, sem ela. E ele era uma excelente pessoa!

O ideal seria que conseguíssemos olhar para o outro como uma pessoa diferente de nós, que por acaso se encaixa connosco e nos faz feliz. Não faz sentido esquecermos a nossa personalidade em detrimento de outrém. Porque, mais tarde ou mais cedo, vamos precisar de nós outra vez...

quarta-feira, agosto 08, 2007

São Miguel II

O sol bate forte no Ilhéu. Ponho creme a dobrar para não apanhar um escaldão. Estendo a toalha na rocha e ajeito o corpo à pedra negra para poder dormir, mas o calor não me deixa ficar. Levanto-me várias vezes para tomar banho.

No Ilhéu de Vila Franca do Campo - dizem que aparece agora na TV, na telenovela Ilha dos Amores que nunca vi - está-se numa espécie de paraíso no mar. A água entra pela abertura das rochas e forma uma fantástica piscina salgada, com um pedaço de praia. Não ficamos na areia, escolhemos o lado oposto que é mais acessível de barco. O sol é muito quente e reflecte na pedra escura. Tudo aqui é negro, da areia à rocha. Queima mais.

Quando adormeço começa a chover. Uma chuva fraquinha, quase nada, que nos faz levantar para ir embora. Ainda há tempo para mais um mergulho no caldo que está o mar. E partimos, amontoados no barco que faz a travessia, cheio de gente para cá e para lá.

Terminamos o dia no bar da praia do Pópulo. Um galão ao entardecer enquanto o sol se põe, ao fundo. Não chove. Mas há nuvens escuras que deixam antever uma noite molhada. Já se sabe: em São Miguel podem fazer as quatro estações num só dia. Hoje já foi Verão e cai uma noite de Outono.

Ao quarto dia tenho saudades.

terça-feira, agosto 07, 2007

Ralações

Nós, as mulheres, teimamos em ver problemas em tudo. Somos comichosas e problemáticas, inventamos crises, prolongamos dissabores, não esquecemos desgostos, criamos tempestades em copos de água. Os homens não. São diferentes. Não se preocupam com quase nada e, no que toca às mulheres, estão-se borrifando. Para eles está sempre tudo bem. E se não estiver, eles não estão nem aí. Adormecem, e pronto.

Uma mulher queixa-se se o namorado não lhe dá um beijo, se o namorado a beija demasiadas vezes, se não tem namorado. Um homem beija a namorada quando lhe apetece, desvia-a se não está para aí virado, aproveita a vida quando não tem namorada. Somos diferentes, e eles são mais felizes. Sem dúvida.

Com a experiência que já tive e alguns dissabores a este nível posso dizer que o segredo está na adaptação. Ou seja, nós, mulheres, temos de começar a adaptar-nos à vida deles. Não por condescendência, mas porque é melhor para nós, porque nos dá menos preocupações. Senão, vejamos: se um homem não telefona antes de adormecer temos duas hipóteses, ou telefonamos nós, ou vamos dormir e esperamos pelo telefonema do dia seguinte. Como mulheres que somos, o mais certo é, em qualquer das ocasiões, perguntar 'porque é não telefonaste?'. Errado. O segredo da adaptação passa por não perguntar nada. O que eu faria era telefonar e falar como se nunca tivesse esperado pela chamada nocturna. Uma forma de não pressionar o outro lado. No dia seguinte, é quase certo, o telefone toca.

Outro caso: convidamos o nosso namorado (ou marido) para a festa de anos de uma amiga. Se ele disser 'não vou', a nossa tendência é insistir e pedir que ele vá, pressionar. Errado. O segredo é dizer 'ok, mas eu vou'. E talvez acrescentar 'podes ir buscar-me?'. Ou seja, ele terá de estar acordado à espera, e até pode ficar no sofá a ler ou agarrado à televisão, mas estará sempre a pensar que nós nos estamos a divertir. Ficar com ele seria errado. Obrigá-lo a ir, um pesadelo. Se a coisa se repetir, é certo que, mais dia, menos dia, ele acompanha-nos.

A adaptação não é fácil, mas passa por uma despreocupação acima da média à qual não estamos habituadas. Porque raciocinamos de forma feminina. Mas se pensarmos que eles vivem mais descansados que nós, sem stress, e com metade dos problemas, vamos acabar por apostar nesta nova forma de vida.

Talvez volte a dissertar mais sobre este assunto...

São Miguel 1

Entre a chuva e o sol a tarde passou-se nos Mosteiros. É uma zona linda, com duas pedras no meio do mar que mais parecem dois conventos; daí o nome da terra. Ao lado dos Mosteiros, outras duas pedras, ao alto, que representam o padre e a freira...

Deitei-me na praia e tomei banho nas poças, como chamam por cá às piscinas naturais. Água em temperatura amena e ondas a cobrir o corpo de vez em quando. E o fundo, visto à transparência, deixa adivinhar as algas e as pedras no fundo do mar. Uma maravilha...

Depois o sol, costas direitas na pedra escura. Ao longe um barco que passa em velocidade e um mar ondulado, com nuvens por cima. Azul, azul, o mar. E as nuvens de uma cor intensa que apetece ficar a olhar. Dormi. Talvez meia hora. Talvez mais... Deixei-me levar pelo vento suave e ali fiquei, entre um pensamento e o outro e depois, num sono leve, mas bom.

Jantámos no Cais 20, uma casa de petiscos em Ponta Delgada. Lapas (bem regadas a limão e com molho de manteiga) com pão de alho e uma salada de polvo. Comecei por acompanhar tudo a galão. Ridículo. Depois, a coca-cola com gelo ajudou a saborear o naco na pedra. Estou satisfeita.

Escrevo antes de ir dormir, certa de que que estas são as férias que preciso. Ao longo do dia há uns quantos telefonemas que fazem os olhos brilhar. Do outro lado uma voz meiga. Boa noite, diz-me ele. Boa noite. Até amanhã. Chove, em São Miguel.

domingo, agosto 05, 2007

São Miguel

Os próximos posts serão desta ilha maravilhosa. Chegada hoje ao início da tarde. Viagem turbulenta com demasiados turistas no avião; crianças que falam demais, bebés que choram, pessoas que aplaudem quando o avião aterra.

Por esta hora ainda se vê o sol. E bem. Creio que vou poder aproveitá-lo ao longo da semana.

Até já.

E o tempo que não passa

[Foto: Reuters]

Se existe uma expressão física da saudade estou a senti-la agora.

sexta-feira, agosto 03, 2007

Boas Notícias

Da Agência Lusa:

Cinema: Novo filme de Paul Auster, "A Vida Interior de Martin Frost", estreia em Portugal a 11 de Outubro

Lisboa, 03 Ago (Lusa) - O novo filme do escritor e realizador norte-americano Paul Auster, "The Inner Life of Martin Frost/A Vida Interior de Martin Frost", rodado em Portugal, estreia a 11 de Outubro nas salas de cinema nacionais, anunciou hoje a produtora.

De acordo com a Clap Filmes, o filme, produzido por Paulo Branco, foi exibido em Março em Nova Iorque no Festival de Novos Realizadores/Novos Filmes, e será apresentado na Europa durante o 55 Festival de San Sebastian na selecção oficial, fora de competição, a decorrer entre 20 e 29 de Setembro.

Em San Sebastian, Paul Auster, que em 2006 foi condecorado com o Prémio Príncipe das Astúrias das Letras, irá também fazer parte do júri oficial do certame. "The Inner Life of Martin Frost/A Vida Interior de Martin Frost" é a segunda longa-metragem realizada pelo escritor norte-americano, depois de "Lulu on the Bridge" (1998), e é baseado parcialmente no romance do mesmo autor "O Livro das Ilusões".

Filmado em Maio de 2006 em Lisboa e na zona de Sintra, o filme - uma co-produção da Clap Filmes (Portugal), Alma Films (França) e a Tornasol Films (Espanha) - relata o encontro de um escritor de sucesso com uma mulher misteriosa. A descansar sozinho numa casa de campo depois de publicar o seu último romance, é surpreendido por uma misteriosa mulher deitada a seu lado, e, fascinado pela sua beleza e inteligência, apaixona-se por ela, levando-o a escrever o livro "mais que perfeito".

Para os principais papéis foram convidados os actores David Thewlis, que participou anteriormente em filmes como "Nu" e "Sete Anos no Tibete", Irene Jacob, que entrou em películas como "A Educação das Fadas" e "A Dupla Vida de Veronique", Michael Imperioli, da série televisiva Sopranos, e Sophie Auster, filha de Paul Auster, que, ainda criança, teve uma participação em "Lulu on the Bridge".

Nascido nos Estados Unidos, Paul Auster, 60 anos, foi profundamente influenciado por escritores como Poe, Withman, Cervantes, Kafka, Dostoievski e Beckett. Dedicou-se de início à tradução e trabalhou em revistas literárias até que a publicação, em 1985, de "Trilogia de Nova Iorque" deu um impulso decisivo à sua carreira, e obteve uma projecção que consolidaria com obras como "No país das últimas coisas" (1987), "A música do acaso" (1990) e"Leviathan" (1992). Apaixonado também pelo cinema, Auster escreveu o argumento de "Fumo" (1996) e "Fumo Azul" (1996), de Wayne Wang, com quem depois co-realizaria "Blue in the Face".

quarta-feira, agosto 01, 2007

Gordura é formusura

Antes, quando me referia a ele, dizia sempre 'é aquele gordo, de bigode'... nenhuma das características me agradava: sempre achei horrível, um homem de bigode (havia de ser uma mulher?!?)... e, já se sabe, para o comum dos mortais, e por causa dos anúncios e assim, uma pessoa gorda não é agradável à vista, especialmente se for... muito gorda.

Os gordos movimentam-se de forma mais lenta e, por norma, não gostam de aventuras, caminhadas, passeios na montanha, descidas de rios, voos de parapente. Tudo coisas que eu adoro fazer. Como convencer um gordo a subir uma montanha em dois dias, com uma paragem num abrigo e dormida em camarata? Como dizer-lhe que os chocolates, nessa caminhada, não são uma guloseima mas uma forma de obter energia? Como explicar a um gordo que é preciso andar a pé, usar umas botas próprias e subir, subir, passar por montes e vales, descobrir a natureza, esquecer os passos que se dão para trás e não temer a chegada ao topo? Um gordo prefere ficar cá em baixo, a repousar, na rede, encostado à tenda - se aceitar dormir numa tenda - a beber uma cervejola ou uma coca-cola; dormir a sesta, com um bom livro na barriga. Eu já andei pelas Astúrias, pelos Pirinéus, pelos Alpes suiços... e não me lembro de ver um gordo a subir montanhas.

Mas eis que reparo nas bochechas do gordo. Eis que me delicio a apertá-las, a senti-las, a beijá-las... Eis que me adapto à vida do gordo e passo a fazer férias na cidade, trocando a montanha e a aventura. O gordo nem sequer sabe andar de bicicleta - muitos não sabem, ou não querem - e só a muito custo anda a pé. Dou-lhe boleia sempre que posso - porque não sabe conduzir - e, quando não está no meu carro, anda de taxi. Ainda assim, vai a todo o lado e, mesmo os lugares que não conhece, sabe-os de cor por causa dos tais livros que abre em cima da barriga.

Quando jantamos, come sempre o dele e uma parte do meu. Rouba-me as batatas fritas e gosta de um hamburguer regado a ketchup. Também põe maionese nas tais batatas e mostarda no prego no pão. O gordo raramente deixa comida no prato e evita verduras e saladas... nunca o vi comer uma sopa... só canja, que é refeição de doente, ou uma daquelas sopas da pedra, da Loja das Sopas, que enchem tanto como um cozido à portuguesa. Mas o gordo paga-me tantos jantares, tantos almoços, que só posso agradecer-lhe a boa vontade e o cartão de crédito. Não é forreta e gosta de partilhar, paga sempre as contas mais altas e deixa-me a mim as refeições ridículas, o fast-food ou os pequenos-almoços.

O gordo é muito pesado. Quando se encosta a mim tenho sempre de respirar fundo. Afasto depois os braços que estão no meu ombro, a perna sobre a minha, a barriga encostada ao meu corpo. Afasto tudo delicadamente mas acho piada. Gosto. O meu braço não chega para dar a volta e um abraço fica sempre a meio-gás. Mas o gordo é fofo, carinhoso, molinho, sabe bem apertar, como se fosse um boneco de peluche, uma almofada confortável.

Eu até gostava que o gordo fizesse dieta, mas não é por causa da imagem. Por uma questão de saúde. Para mim, o gordo é um homem lindo, mesmo quando me parce inusitado o número das calças ou quando tenho de ir à loja porque a camisa não serviu. O gordo tem uns olhos doces que saem sobre as bochechas para olhar para mim; tem umas mãos redondas que apertam as minhas como se fossem só dele; tem um ar rechonchudo, como um sempre em pé, que apetece agarrar. O gordo é o meu namorado, e não preciso de outro.

Quando se quer, gordura é formusura.

Regresso ao Divã VI

Esperou que ele acabasse a chamada num telemóvel topo de gama, talvez comprado com o dinheiro que lhe pagava todas as semanas. Estava já deitada no divã, cabeça encaixada na almofada, mãos sobre a barriga e os pés cruzados, lá em baixo. Tinha as pernas nuas, por ser Verão, e brilhava o verniz nos dedos dos pés. Pintara as unhas de carmim pela primeira vez, e ainda lhe custava olhar para a cor que sobressaía nas sandálias douradas, cor da moda.

Ele entrou e fechou a porta dupla: uma no exterior, que dava para a sala de espera; outra interior, que se fechava por dentro. As duas portas fechadas impediam a passagem do som para o outro lado, não permitiam que a voz dela se ouvisse para lá das paredes. Se chorasse, ninguém ouviria. Mas ela nunca chorava.

Ouviu-o sentar-se atrás dela, cruzar a perna e amarrotar uma folha de papel que deitou depois no lixo. Talvez um contacto, a história de alguém, os desabafos de um outro doente que entretanto tinha estado ali deitado, no mesmo divã. Não esperou pelo convite e começou a falar. Tinha tanto para lhe dizer... queria que ele soubesse que ela estava disposta a mudar, disposta a fazer um esforço, disposta a tudo para resolver o problema que a levava ali, semana após semana, mês após mês. Ele não a interrompeu. Ouviu-a calado, como sempre fazia quando a vontade do doente era apenas falar.

Ela mexia as mãos e acompanhava as palavras com o gesticular. Abanava as pernas devagar, sem deixar que a saia subisse acima do joelho, fixava os olhos nos pés pintados enquanto chinelava nervosa. Ficava sempre nervosa, naquele divã. E estava cansada desse nervosismo, cansada de estar ali, de repetir vezes sem conta as mesmas crises, as mesmas dores, o mesmo sofrimento. Por isso queria mudar. Queria ser outra pessoa, como se pudesse fazer uma total mudança de personalidade, um transplante de alma, uma operação plástica que a deixasse diferente. Mas não sabia se podia acreditar...

- E o que está a pensar fazer para mudar? - a voz dele pareceu-lhe fria, distante, talvez por não estar atento à energia que ela levava, talvez por também ele não acreditar. Ou talvez fosse apenas uma impressão dela. Na verdade era isso mesmo: ele não queria vê-la desistir, queria acompanhá-la, fazê-la acreditar, ajudá-la a seguir em frente sem que fosse necessária a tal operação plástica, sem que fosse preciso o transplante de alma. Ele queria que a mesma pessoa pensasse de uma maneira diferente. Só isso...

- Eu podia telefonar-lhe e dizer que quero falar com ele, esclarecer as coisas. - Para quê, perguntou ele. - Para ficar descansada, de consciência tranquila, certa de que fiz tudo o que era possível. E não fez? replicou ele. Pausa. Sim, tinha feito. Quantos telefonemas já tinha ela feito? Quantas tentativas, quantas conversas já tinha tido? Todas as possíveis. Disso, não havia dúvida.
Não sabia o que fazer. Se estava tudo feito... o que lhe restava? Pensou então que não podia fazer mais nada por ele. Estava na hora de fazer tudo por ela. Trocou a posição das pernas e reparou que o verniz estava já carcomido numa das unhas. Tinha de retocá-lo. Ficou calada à espera de uma resposta que poderia vir através dele, ou através dela. Às vezes acontecia, quando se calava, acontecia que as respostas lhe surgiam. O telefone dele voltou a tocar: 'desculpe' e atendeu em sussuro, levantando-se.

Ela ficou ali, só ela, naquele divã onde a voz que se ouvia ao longe falava baixinho. No telefone dela havia um número, na letra 'J' que gostaria de apagar. Mas tinha-o de cor. Nem precisava do cartão de memória. Pensou que podia apagá-lo dali, era um começo. Decidiu fazê-lo mal saísse dali. Ele desligou e voltou a sentar-se com um novo pedido de desculpas. - Vou manter na memória apenas o indispensável, disse ela. Vou guardar o que me fez feliz, o que ainda me faz feliz. Vou apagar lentamente tudo o resto, como se faz num cartão de telemóvel já cheio.

- E como fará isso, perguntou ele.

- Carrego no delete. Riu-se, era uma metáfora. Não - retorquiu - vou gravar novas memórias por cima dele. Substituo o nome dele por outro, por outros, tanto faz. Refaço os meus dias com coisas novas, com pessoas que já conheço e com outras que virei a conhecer. Preencho o meu cartão de forma a não caber mais nada. E quando tiver novas recordações, novas memórias, fixo-me nelas. Passam a ser passado recente.

Quando saiu o telefone dele voltou a tocar, mas ela já não o ouviu.