quinta-feira, setembro 06, 2007

À porta do Céu II

Chegava a casa já noite escura vindo da mercearia de Campolide. Passava o dia a pesar a fruta na balança que, naquele tempo, não era electrónica e exigia contas de cabeça. Lembro-me dele com a caneta pendurada na orelha, sempre pronto a apontar os números num papel, capaz de somas e divisões num segundo. Também o vejo a cortar o frango numa altura em que não existia ASAE. Tirava o bicho já morto do frigorífico e cortava-o em quatro para depois embrulhá-lo em papel pardo. Com, ou sem miúdos, conforme o pedido do cliente.

No passado, outras profissões: sapateiro e guarda-nocturno. Ainda hoje sei onde estão gurdados os materiais que usava para arranjar meias-solas. Colou-me alguns sapatos e sabia cosê-los como ninguém. Noutros tempos, fazia-os novos para a minha avó vender na Feira da Ladra, em Lisboa.

Chegava a casa já noite escura. Subia ao terceiro andar já com algum custo pois a idade começava a pesar. Eu teria uns seis ou sete anos e esperava-o cá em cima. Já lhe conhecia o andar na escada de 52 degraus. Entrava na primeira porta à direita, o quarto dele e da avó. Eu já lá estava. Desapertava-lhe então os atacadores e não o deixava baixar-se. Tirava-lhe os dois sapatos e punha-lhe os chinelos a jeito. Ele calçava-os pronto para ir lavar os pés, descansá-los em água morna. Mas antes, a recompensa: tirava do bolso das calças um punhado de Smarties. Eu que não gostava de chocolate fiquei a adorar aqueles pedacinhos coloridos, vindos da mão do meu avô.

Esteve 10 anpos com um cancro e fez inúmeras operações e muitas mais passagens pelo hospital. Era um doente exemplar. Não se queixava, era simpático, agradecia todo o apoio prestado. Tinha até uma enfermeira, do Hospital Amadora-Sintra, que lhe mandava postais no Natal. Confesso que tinha ciúmes. Falava dela como de um anjo da guarda, o mesmo nome que me deu quando, já muito próximo da morte, olhou para mim enternecido depois de mais uma crise de dor.

Há momentos que não podem ser escritos. Há pedaços da nossa vida que não têm letras capazes de os exprimir. Já passaram oito ou nove anos, confesso que me perdi nessa data. E ainda bem... prefiro guardar os sorriso e outras memórias como a mão cheia de Smarties coloridos. Eu acredito no Céu. Sempre acreditei. E imagino-o por lá, ainda solteiro - é tão bom manter a minha avó - talvez num jogo de cartas com os amigos, passatempo que lhe ocupou boa parte da velhice. Ou então a tocar guitarra e a cantar músicas que não voltei a ouvir.

E já estará de chinelos, para não magoar os pés.

2 comentários:

Anónimo disse...

Emocionei-me. Muito!

Anónimo disse...

comovente.
certamente lá estará com os seus smarties. e sem duvida que também toca a guitarra pensando em si.