terça-feira, setembro 04, 2007

À porta do céu

Abriamos a porta do galinheiro pela manhã e lá íamos nós. Eu mais a receio, sem saber muito bem o que esperar das galinhas. Haveríamos sempre de encontrar um ovo posto pela fresca pronto a estrelar para comer com pão. Foram assim muitas manhãs de verão da minha infância. Ovo posto, ovo no prato, com sabor exclusivo a férias grandes. Por vezes eram verdadeiros acampamentos casa fora. Mais de 10 primos a partilhar camas, alguns dos quais nem falavam português e outros em idade de não saber falar mais nada. Mas lá nos iamos entendendo e, meio a medo, perseguíamos vacas até que elas se virassem para trás pondo-nos em fuga e corriamos atrás de sapos na esperança de que não fossem eles a correr atrás de nós. E ela, orfã quase desde sempre, adorava ter a casa cheia.
Desses dias recordo-me também de ir apanhar toranjas com a minha avó e do dia em que as primas-meninas a sentaram no alpendre e, como que brincando à bonecas, lhe fizeram trancinhas e lhe pintaram os lábios com baton. Nunca antes deveria ter posto baton. O meu avô não gostou. Deve ter achado a brincadeira jocosa, ao ver a mulher que nunca soube ler ou escrever sentada com laços na cabeça. Mas nada disso, só queriamos "enbonecá-la". Poucos anos depois ele morreu, deixando-a atarantada. Ele sempre fora o homem lá de casa e ela nem sequer dos tostões tinha noção pois as contas sempre as fizera ele enquanto ela amassava o pão ou ia buscar água à fonte. Pelo que, pelos meus 20 anos, veio feliz dar-me uma moeda de 20 escudos.
Aprendi a gostar mais da minha avó já crescida. Velhinha, já tão velhinha, foi a primeira pessoa a dizer-me que estava na altura de eu sair de casa, de "juntar os trapinhos" porque o casamento era coisa de outros tempos.
Acho que a idade lhe apurou o humor e era muitas vezes assim que nos entendíamos. Trocando piadas e piropos. Nos últimos meses que passou num lar, deram com ela várias vezes de manhã a perguntar à companheira de quarto se ainda estavam vivas ou se já tinham morrido. "Se estamos a falar uma com a outra é porque não morremos", concluiam. E preparavam-se para mais um dia. A minha avó foi uma resistente. E eu que não acredito no céu adorava que ele existisse nem que fosse só por esta noite pois tenho a certeza de que o meu avô estaria sentado à porta à espera dela.
E vocês, do que é que se lembram?

5 comentários:

Anónimo disse...

Fiquei tão emocionada, que nem me lembro de nada...parecido...

Fim de Partida disse...

Lembro-me da minha hist�ria e de que como era t�o bom ter av�s. Beijos grandes

PedroNuno disse...

Dra Miranda, pode mandar mais destes, sff? Muito bom!

miranda disse...

Dr Nuno: mas se já não me restam mais avós....

Anónimo disse...

Tive a certeza que a minha avó estava morta quando coloquei a chave na porta do prédio, ainda de mochila às costas.
Não toquei à campainha, como sempre fizera, desde que me lembro de mim. Tinha que me pendurar na porta para chegar ao botão que fazia aquela mulher de olhos tão bonitos vir à janela.
Agora, não valia a pena. Ninguém viria espreitar à janela com um sorriso e esperar por mim no topo das escadas em espiral.
Ah!...mas o cheiro era o mesmo. Cheiro a infância, a viagens de comboio, a férias, a familia, a carinho. A descanso.
Lá estava o vidro rachado por mim e pela minha irmã há mais de quinze anos.
Lá estava a tranquilidade de um lugar onde sabemos estar protegidos. [O
mundo é agora menos seguro].
Rodo a chave da casa e a primeira visão é a de uma carteira pendurada, ainda com dinheiro. Jantei com ele. E brindei aos que vão e aos que ficam.
Porque os que vão impregnam os que ficam.
Ela morreu só, num quente dia de Verão.
Dois anos antes o meu avô tinha percorrido o mesmo caminho, mas em lenta decomposição cerebral.
Ela, foi-se num sopro.
Uma semana antes tinha-se despedido de mim.
Quando saí do Hospital lá estava ela na minha casa, para ajudar na convalescença.
Um dia, teve que partir. Perguntou-me se eu não queria ir para casa dela passar uma ferias, recompôr-me.
Não podia, respondi, pois tinha que trabalhar.
De repente, com os seus olhos fixos nos meus, cheios de idade, perguntou-me se eu acreditava no céu.
Respondi-lhe que não, que as pessoas, para serem boas na Terra, não precisam de acreditar no céu.
Nunca tinha discutido religião com ela, autêntica cristã. Esperava uma reacção, uma leve reprimenda.
Mas não. Apenas me indagou, suavemente, se não achava que havia muitas coisas que escapavam à nossa compreensão.
Doce avó, como me espantaste, e como tens razão.
Escapa-me o sentido de já não te poder visitar, nem a ti nem à tua casa.
A tua casa que modelou a minha infância, com os jantares de família e as cumplicidades entre irmãos. Os natais e as férias grandes quando para aqui me desterravam para a engorda.
“Devias ser expropriado por propriedade pública”, dizia o meu avô, quando o silêncio pairava sobre a mesa de onde já não se viam os cães.
“Quantos amigos tens?”, perguntou-me ele um dia, ao acordar-me no sótão. Respondi que muitos ou alguns, não me recordo. “Dá-te por feliz se, ao chegares à minha idade, ainda tiveres algum”, replicou.
Engraçado como algumas imagens e diálogos nos ficam para o resto da vida, relembrando as pessoas a partir destes escassos momentos, enquanto tantos outros se perdem no vazio da memória.
“Ainda bem que estive aí”, disse a minha avó à minha mãe, na véspera de sua morte. “Escapei a imensos funerais. Parece que está tudo a morrer”.
Como um dominó, também ela recebeu a sua vez de cair deste mundo. Poucos dias depois, foi o meu tio Chico.
Porquê tantos? Não sei. Só sei que, quando se é velho, pior ficam os que ainda vivem.
Venho-me despedir de ti, casa de recordações.
Venho-te despojar da alma, para que a minha enriqueça.
Venho tirar-te lembranças, muitas das quais não me dizem nada.
Mas as que dizem são agora parte de mim.
Como tu és agora, Maria Júlia, Mãe, Avó, bisavó dos piu-pius.
Só espero que tenhas a razão do teu lado.
Morreste só nesta casa, mas, para mim, estiveste sempre acompanhada pela tua familia num plano que escapa ao entendimento.
Possa eu honrar a tua memória e ver o mundo com a tua idade e lucidez.
Vou sair desta casa para sempre. E custa-me.
A roupa ainda está pendurada, como se ela tivesse apenas saído por algum tempo. E assim foi. Só não sabemos por quanto tempo.
O calendário parou em Julho.