quinta-feira, maio 11, 2006

Chiado

Estacionou o carro num lugar de sorte. Sem parquímetro, via-verde, ou parque subterrâneo 'aberto até às 4 da manhã'. Não precisava. Eram pouco mais de três da tarde e o sol iluminava os edifícios mais altos do Chiado. Eram poucos, por isso a luz vinha até cá abaixo, às ruas estreitas de calçada às vezes negra onde só os carros a passar já fazem o barulho necessário para aquela hora. Mas há por ali o metro. E também se ouve. Já se tinha habituado à trepidação. Sempre acordava dos pensamentos daquele início de tarde...

Pôs pés ao caminho com destino aos melhores gelados do mundo - assim pensava ela - e ficou descansada quando viu que havia lugares vagos na Häggen Dazz. Não era fim-de-semana, mas não sabia a quantas andava. Debaixo do braço, um livro, e na mente um pedido: um crepe de strawberry cheesecake. Ah, e um batido de chocolate, se faz favor.

O serviço foi rápido e nem lhe permitiu avançar muitas páginas naquele livro que fala de locuras num canto que é de Nova Iorque. Era lá que sonhava estar, pés descalços na relva de Central Park, olhar no céu, preso no topo dos edifícios, maiores que aqueles, do Chiado, mas nem sempre mais bonitos. Porém, parecem voar como se estivessemos numa base da NASA à espera da contagem decrescente...

Pareceu-lhe que, no que respeita aos transeuntes, o Chiado lisboeta é tal e qual os bairros cultos e chiques de Manhattan, aqueles onde se gravam as cenas de séries como o Sexo e a Cidade, onde as montras parecem lindas, sendo antigas e tradicionais, onde a moda é da requintada mas também pode ser barata; onde as pessoas são como são e ninguém se importa. Ali, na cabeça dela, cruzavam-se a Rua Garrett com a 5ª Avenida.

Foi com estes pensamentos que saiu da loja de gelados, barriga cheia, alma vazia, e deu com uma das mais bonitas igrejas de Lisboa, agora recuperada. Entrou no momento em que o sacerdote dizia 'Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe'! Preferiu ficar. Sentou-se na última fila de bancos e pousou a cabeça no peito. No seu próprio peito porque ao lado não havia um ombro. Fechou os olhos e imaginou um apoio vindo de cima. Suplicou por Ele. Que ela, diferente do que já fora, recebesse ali - naquele porto onde amontoava a gente diferente - a benção dos que ousam mudar. Ela também queria mudar. E pediu-Lhe que a ajudasse a fazê-lo.

Nesse dia já tinha ido cortar o cabelo, corte moderno, despenteado, e as unhas trazia-as vermelhas - confundiam-se com as cerejas que roubara, por bem, na mercearia de um bairro vizinho. Mas a mudança que pediu foi outra. A do espelho não mudava o olhar, nem tirava dela um único sorriso.

A tarde estava a cair e uma mulher sem pressa também não costuma estar feliz. Saiu passo a passo e ignorou o pedinte à porta, como ignorou todos os outros, os que metiam fogo pela boca, os que faziam rir os turistas, os que cheiravam mal por serem excêntricos, os que não tomavam banho porque esse lado sujo e desarranjado faz parte de um papel. Ignorou-os a todos. Mas teria reparado neles, se não estivesse a pensar no que não devia.

Ali, em pleno Chiado, onde tudo se quer diferente, ela estava igual, naquele fim de tarde.

E foi para casa. Teria sido em vão, a viagem?

3 comentários:

Leão da Lezíria disse...

Bem vinda aos grandes posts, querida Samantha.

Tenho a certeza que esta tua personagem, quem quer que seja, dois dias depois do gelado do Haagen Dazz voltou a acreditar que de uma viagem, ainda que às profundezas do mais mal-afamado bairro, trará sempre mais força e mais experiência.

E utilizará esta força e este novo saber na próxima viagem.

Carrie disse...

Nenhuma viagem é em vão.

Anónimo disse...

A Carrie tirou-me as palavras da boca...Grande posta!