A Reboque
As lágrimas ameaçavam saltar-lhe dos olhos quando meteu a chave na igninição. Nada. Tentou outra vez, nada. Deve ser da bateria. Deve ser. Entra e sai do carro, experimenta a tranca central, dá voltas e tenta abrir todas as portas. Avariado. Tudo avariado. O HDI mal estacionado num parque de estacionamento do Centro Comercial de Almada estava ali para não se mexer. Sinais de luzes, poucos, sinais de motor, zero... sinais de trânsito!
O primeiro que se aproximou dela era um negro, forte, chefe da recolha de lixo àquelas horas, porque já passava da meia-noite e tudo corria para fechar. Olhou para o vestido castanho que lhe acentuava o peito e teve pena dela. Vai lá, o Zé, leva uns cabos de bateria e ajuda a senhora.
A senhora agradeceu ao homem de peito inchado, branco do pólo colado ao corpo e mexeu-se nas sandálias de salto. Que merda, ali perdida, com um companheiro que percebia mais de Brecht que de válvulas; que até podia servir para entoar A Flauta Mágica de cor, mas que não saberia diferenciar o positivo e o negativo de uma bateria. Esperou pelo Zé.
Ele veio de carro próprio, desculpou-se com o patrão - que ele estava a ouvir tudo mas o patrão é que tinha de dar a deixa - e abriu o capot. Fio com fio, mais com mais, menos com menos. Nada. Um ligeiro choro do motor e nada no arranque. Prego a fundo e não havia vida naquele Peugeot azul, prenda de casamento há mais de quatro anos. Não é bateria. Não é.
Obrigada, senhor Zé. Num encolher de ombros lá foi o homem à vida dele, de caixotes do lixo e contentores para tratar a noite toda. Ela voltou ao intelectual que era o namorado e quase chorou. Ele sorriu e disse-lhe que sim, que era intelectual, e que isso até tinha piada, naquela altura, quando se espera de um homem um abanão, mãos na cintura, e cabeça dentro do motor. A cabeça dele é uma máquina, mas não entende as outras. Até a dela é complicada, às vezes.
Chamou o reboque. Chamou o irmão. Daqui a meia hora, disseram-lhe do reboque. Daqui a uma hora, disse-lhe o irmão. O irmão chegou primeiro e esperaram os três pelo reboque. Já passava das duas da manhã quando o homem chegou. Vinha sozinho.
Explicado o problema, já o vestido castanho se mostrava amarrotado com o cansaço, e o ar se fazia pesado na cabeça de cada um deles. O homem pôs mãos à obra. Boa. Pensaram... Mas depois pôs as mãos à cabeça... é que eu não estou muito habituado a este reboque... Ai não? Não, é um colega meu que anda com ele. Pois. E agora? Não se preocupe. Três da manhã. Três e meia. Àquela hora até o namorado intelectual já emputrrava o carro para cima do reboque.
O carro lá foi, a medo. Com o medo dela a persegui-lo de costas, luzes desligadas e frente ligeiramente levantada. Teria orgulho em ser deslocado? Foi para casa à boleia do irmão e ainda fizeram uns bons quilómetros. Cansados.
Quase 24 horas depois ainda não há diagnóstico. O carro vai ficar internado todo o fim-de-semana e ela já vestiu hoje umas calças de ganga. Há-de estar preparada para tudo. E pode levar o namorado na mesma.
2 comentários:
é o poste mais (.. num consigo adjectivar convenientemente a impressão que me causou..) que te vi. Isso e ligeiro. Muito ligeiro, inclusive dado o tema e a desgraça em que'stão... - agora abstenho-me de parêntesis.
Em suma, gostei de ler (e essas coisas)
Quando me aconteceu o mesmo ao meu carro, dizia...olha o meu carro pifou, tou sem carro!!! Ele há pessoas que vão muito bem mesmo muito bem com a escrita.
Está bonito o conto.
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