A Adelaide
Desliga o rádio. Roda a chave para a posição inicial. Tenta novamente. As luzes no painel acendem-se. Do motor chega um ruído rouco. Um estertor de morte. Encosta-se para trás. Solta um suspiro, pronta a esperar. Lembra-se vagamente que não devia insistir com o acelerador. O motor pode morrer por afogamento. Pega num cigarro. Acendeu-o. Fica a olhar para a luz alaranjada da beata. Pensa nas alternativas. Ligar para o reboque vai sair-lhe caro. Não pode entrar em despesas extra. Ainda está a pagar a cirurgia. Olha orgulhosa para o decote generoso.
Percorre mentalmente a agenda de contactos. João. Casado. Tiago. A coisa não correu bem da última vez. Miguel. Mudou-se. André. Casado. Luís. Um chato. Jaime. Muito mau de cama. Ricardo. Casado. A extensa lista em riscos de se esgotar. Os homens casam-se cada vez hoje em dia. Sai mais barato que ter uma empregada. Eliminam as putas da lista de despesas. Segura a beata entre o polegar e o indicador. Atira-a pela janela. Volta a tentar. O Honda nunca a deixou ficar mal. Dá a volta à chave. Agora o silêncio é total. Raios! Devia ter trocado a bateria. Pega no telemóvel. Percorre o alfabeto. Tiago. Antes mau sexo do que ficar a noite inteira aqui parada. Marca o número. O telefone toca até entrar na caixa de mensagens. Foda-se! Tira a chave da ignição. Desiste.
O olhar percorre a rua vazia. Faz sinal a um táxi quando o telefone começa a tocar. Nuno G.? Pensa Adelaide, pensa! Ele pode ser o teu cavaleiro branco. Atende antes de perceber quem é. Ele quer ir beber um copo. Ela explica-lhe a situação. Ele oferece-lhe ajuda. Aceita, mesmo que continue sem conseguir dar um rosto à voz e ao nome. Volta a entrar no carro. Acende novo cigarro. Volta a esperar. Um Porsche pára ao seu lado. Ah! Afinal é este. Quando o carro começa a trabalhar, ele diz para o seguir. Rumam às Docas. No caminho falam da vida. Dos amigos que têm em comum.
Vão andando de bar em bar. Bebem shots de vodka. Às onze da noite estão os dois bem bebidos. Ele diz-lhe que deviam ir para um sítio mais calmo. Saem da confusão de rostos anónimos. Dirigem-se aos carros. Nenhum está em estado para conduzir. Mas não é isso que os impede de chegar ao destino. Pelo caminho ela pensa quando fui a última vez que fez a depilação. Tenta lembrar-se da lingerie que tem vestida. Param a poucos metros da casa dela. Começam a beijar-se mal saem do carro. Ele vai conduzindo aquela dança. Ela anda de costas. Confiante nos braços que a guiam. De repente tropeça numa garrafa caída mesmo a porta do prédio. Olha para baixo. É então que o vê.
Rafael? O que é que estás aqui a fazer? Mais pelo olhar do que pela garrafa caída percebe que ele já passou da conta. Os gestos lentos. A língua entaramelada. Tu disseste para eu aparecer. Ela olha-o furiosa. Três meses atrás dele. Nega atrás de nega. E agora é que ele vem?! Olha para o Nuno. Pede-lhe desculpa com o olhar. Ligo-te depois, responde-lhe antes de lhe virar as costas. Ela sabe que ele não vai ligar. Foda-se para este gajo. Já me lixou a noite. Ajuda-o a levantar. Mete a chave à porta. É então que ele diz. Tenho a mala no carro...
[Este post foi começado antes da Samantha ter ficado sem carro. Como a imaginação não é muita e tenho que me contentar com pequenos rasgos, não tive coragem de começar de novo.]
4 comentários:
A parte mais importante. Os ()retos. Descontrai, faz rir e evita comentários jocosos.
Agora que nao foi o R. a escrever... Entao, o Porsche aparece por acaso, ou e' um protagionista relevante para o desfecho que poderia ser?
Convem ser uma mulher a responder a isto, porque para nos, homens, o carro de sucesso e' usado sempre como um optimo afrodosiaco; ou optima desculpa, caso a caso...
De facto, mais cidade do que outra coisa...
Carrie, meninas, va' la'; elaborem mais esta eterna questao da importancia dos carros nos contactos iniciais... :)
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