Águas passadas
Chove torrencialmente e só a custo cheguei a casa ilesa. O Peugeot 307, habituado a andar acima dos 140, manteve-se na casa dos 70 Km/hora, por precaução. A chuva turvou-me a vista e talvez por isso tenha recuperado as imagens do passado, sem me deixar olhar em frente. Às vezes o olhar prega-me partidas e deixa que outras águas me caiam dos olhos, como se valesse a pena molhar o rosto.
Como uma gelatina de morango às colheradas. Dizem que faz bem. Como uma todas as noites, assim como também como, todas as manhãs, um iogurte com cereais misturados. Questões de saúde, recomendações médicas. Dos mesmos médicos que me disseram para te esquecer, os que me ajudam a sair de ti, os que te querem tirar de mim. Mas a chuva volta a turvar-me a vista e fico a rodopiar nas águas, à deriva, em pião.
A música que a RFM passou, já vinha quase a chegar, fez-me pensar nisto tudo. Eu até tive uma noite saborosa, recebi presentes, jantei bem acompnhada, resolvi problemas... eu até estava em paz com a minha cabeça. Mas aquela maldita música começou a ser traduzida nos meus ouvidos como se houvesse alguém, do outro lado do receptor, a dizer-me cada palavra em segredo, em português, para compreender melhor. Não chorei. Deixei que a chuva fizesse o esforço de continuar a correr vidros fora.
Ainda me fazes falta. Não sei porquê. Não sei para quê. Não sei se é um vício se uma necessidade. Não sei se é o mês - lembras-te? é quase dia 20 - se é a vida, apenas, em cada dia. Gostava de poder abraçar-te e não sentir pena, nem remorsos, nem mágoa. Gostava de me livrar de ti de uma maneira carinhosa.
Mas nem o abraço chega, nem sequer consigo ver-te - não fossem os sonhos, claro - nem foges da minha vista, que turva com as águas, mas deixa bem clara a tua presença. Caem bátegas, lá fora. Cá dentro ainda estou de olhos secos.
6 comentários:
malditas musicas que despertam aquilo que nao queriamos...
um bjo
Se por cada música que desperta aquilo que não se quer, se nascer um texto tão belo... venham as músicas!
Beijinhos
O teu texto está incrível! E hoje sinto exactamente o mesmo. Gostava de me livrar dele e de todos estes sentimentos que não me deixam viver em paz, mas cada dia parece mais complicado. Como diria o Miguel Esteves Cardoso: «O amor é fodido»
Parabéns pelo texto....está sem dúvid muito bem escrito.
"Gostava de me livrar de ti de uma forma carinho"...juntar livrar de ti e carinhoso na mesma frase...na me parece uma pessoa livrar-se de forma carinhosa seja possível. O amor é fodido realmente.
De resto, bom gosto pelo carro, apesar de eu ser suspeito pq o meu é igual.
Se soubesse escrever textos assim podia ser a autora (só o carro é que é diferente).
A música tem essa capacidade incrível - e tantas vezes desajeitada - de nos levar para onde não queremos. Um texto fabuloso.
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