sexta-feira, outubro 20, 2006

O peso da responsabilidade *

Saiu de casa com as calças pretas que lhe ficavam bem e a camisa vermelha, meio opaca - meio brilhante que lhe fazia sobressair o peito. Não tinha sido de propósito mas sentiu, ao descer pelo elevador, que não iria passar despercebida. Não era só pela roupa. Não naquele dia. Naquele dia sobressairia também por ela, pelo que dissesse, pelo que escrevesse, pelo que mandasse, pelo que acatasse - ou não - pelo que sentisse.

Nunca se tinha sentido tão bela e tão insegura. Teve a certeza que pouco importava aquela aparência atraente, quase sempre irrestível, um abanar próprio do corpo, um penteado que lhe moldava um rosto fino e agradável. Hoje tinha um batom sem cor. Apenas luzidio, apenas o reflexo suficiente para se desejar um beijo. Ou uma palavra.

Chegou ao jornal mais do que a horas para um café e tomou-o, sozinha, enquanto fumava o segundo cigarro do dia. Fazia aquilo com destreza e com uma certa sensualidade. Mas hoje o fumo parecia-lhe fogo e o café não era sinal de break, mas de uma nova era, um novo passo na carreira, um aceitar de responsabilidades de que não estava à espera. Coordenadora? Editora? Pouco importava o título. O trabalha ia dobrar - já sabia - e os olhares iam amontoar-se nos seus ombros. Respirou fundo e viu a reedacção ainda vazia: 'Vamos lá!', pensou. E saiu da sala de fumo.

O dia passou num ápice, como sempre acontece quando temos muito trabalho. Os sorrisos misturam-se com a tensão e com as rugas já marcadas quando franzia o sobrolho. A meio da manhã já o brilho do batom tinha desaparecido. Naquele dia não houve tempo para retocar. Assistiu à reunião do lado de dentro do gabinete envidraçado que sempre se habituara a ver de fora. Lembrou-se de imaginar as palavras, pelos gestos, pela postura dos que lá estavam, no interior. E agora era ela que gesticulava, que falava, ainda a medo. Que era ouvida. E outros olhavam, do lado de fora.

O dia passou num ápice. Já disse.

À noite, só deu pelo escuro quando foi obrigada a ligar os médios. Tinha a cabeça feita em água e o penteado já fora do sítio. Continuava bonita. Tinha o sorriso cansado de quem tinha cumprido a tarefa. E bem. Sentiu que assim seria todos os dias. Não havia razão para ser de outra forma. Retocou o batom para se ver no retrovisor. Ajeitou a franja e meteu a primeira. Naquele primeiro dia tinha passado a prova. Com distinção.

O resto viria depois. Um problema de cada vez. Uma solução para cada um. Era assim na vida. Porque não o seria no trabalho?

Quando se deitou adormeceu. E sonhou que vivia agora uma realidade que tinha sonhado acordada. Era preciso aproveitar!


* Ou um beijo de boa sorte!

3 comentários:

A. Pinto Correia disse...

"Existem dois mundos. O que chamamos real e o dos sonhos. Só o dos sonhos é verdadeiro". Prov. Árabe. (que me parece adaptar-se muitssimo bem ao teu excelente texto.
Beijo e bom dia

Catarina disse...

A responsabilidade já era dela há muito tempo. E por cumpri-la sempre com distinção resolveram-se finalmente a dar-lhe o nome à função que já tinha.

Carrie disse...

Samantha, Só mesmo muitos anos de amizade e atenção te permitem escrever como se lá tivesses estado. Gostei. Muito.