quinta-feira, outubro 26, 2006

O mundo ao contrário

Vivia ao contrário de toda a gente: levantava-se tarde, quando o mundo acordava, no máximo, às 8 da manhã; deitava-se cedo, às vezes mais cedo que o resto do mundo. Não comia. Às vezes jantava, mas nunca almoçava. Bebia galões e comia pães com manteiga, integrais ou de Deus - às vezes croissants - tinha o frigorífico vazio, o congelador avariado, a despensa cheia de produtos fora de prazo.

Trabalhava com afinco mas nunca estava completamente satisfeita. Queria fazer mais mas perdia as forças, fazia o que podia, deixava-se levar. Às vezes lutava e conseguia. Às vezes assegurava os mínimos e vivia ao ritmo de um lugar conquistado.

Dormia mal, a maior parte das noites. Tinha sono de dia. Acordava a sonhar de noite e nunca sonhava acordada. Não tinha objectivos e pensava um dia de cada vez. Não tinha futuro e nada previa a não ser o dia de amanhã. Quando muito, até meio da tarde porque a noite era sempre uma surpresa.

Deixara de sair e chegava a casa antes de baterem as 12 badaladas. Se chegasse mais cedo ia logo dormir porque não tinha companhia, nem jogos, nem programas, nem comida, nem nada que lhe ocupasse o tempo. Às vezes lia. Tinha centenas de livros. Mas depressa se cansava e fechava as páginas ao fim de 5 ou 10 minutos. Tentara todos os estilos literários, mas nenhum a prendia mais do que isso. Tentara todos os canais e todos os filmes em DVD, mas nenhum a mantinha acordada.

Era um mundo esquisito, sem controlo nem sabedoria. Era um mundo vivido a cada minuto, sem projectos nem concretizações. Estava tudo ao contrário e não sabia como virar tudo outra vez.

Às vezes ia ao ginásio, mas fartava-se dos exercícios repetitivos e das músicas para relaxamento. Tomava o pequeno-almoço fora de casa, e comia sempre a mesma coisa. O homem do bar já sabia e mal a via entrar tirava-lhe logo um galão. O mesmo faziam os homens e mulheres de cada bar que conhecia, no trabalho ou noutro sítio qualquer aonde tivesse entrado mais do que cinco ou seis vezes. Já conhecia o barulho da máquina e tinha uma cor e uma temperatura certas para beber aquele leite com café. Não gostava de café, mas bebia-o com leite. Sentia-se mais acordada e às vezes servia de ponto de encontro, esse galão a meio da tarde.

Vestia roupa diferente todos os dias mas já estava farta de abrir o guarda-roupa. Não tinha dinheiro para comprar mais e o que tinha sobrava-lhe para três Invernos. Se chovia saía de gabardina; e se estava sol não calçava as botas. Não tinha regras mas costumava agir assim. Não escolhia a roupa no dia anterior, limitava-se a abrir o roupeiro e a retirar as primeiras peças. Às vezes escuras. Às vezes refrescantes, conforme o pessimismo dos dias, porque nunca era optimista.

Fazia sempre o mesmo percurso e pagava sempre o mesmo valor de portagem. No regresso era a mesma coisa mas sabia caminhos alternativos. Como na vida, decidira-se a viajar no mais fácil, no mais cómodo, mesmo que lhe saísse mais caro.

No banco tinha a conta em saldo negativo e devia dinheiro à família. Tinha um cartão para o mês seguinte mas nunca o usava para não perder o rumo. Ainda assim gastava muito. Tinha médicos e receitas, tinha galões e pães com manteiga, tinha prendas de aniversário para todos os amigos, tinha despesas da casa, do carro e da vida.

Tinha o mundo ao contrário. Sabia disso. Prometeu virá-lo numa nova maré.

4 comentários:

Anónimo disse...

É uma bela prosa, Sam, das melhores. Um beijo para ti

a dona da gata disse...

Obrigada dia... estava a precisar disto...

LurdesMartins disse...

Gosto muito de passar por aqui... gosto muito de ler o que escreves... adorei este texto, nú, cru, real...

Anónimo disse...

Confesso que em muitas frases quase que ouvi o Palma a cantar "deixa-me rir, esta história não é minha..."

Parabéns!