O Concerto
Há um ano o telefone tocou logo de manhã para te ouvir dizer 'o meu pai morreu. mataram-no'. Foste muito rápida e acelerada, e falaste daquilo como se me estivesses a dar uma outra notícia, qualquer outra, passada com outras pessoas. Nesse dia era sábado. Levantei-me a correr e foi a minha vez de acelerar. Recolhi quem tinha de estar connosco, contigo, e segui pela A1 à espera de encontrar-te desfeita. O teu pai era o teu ídolo.
O teu pai foi assassinado. Coisas que só lemos nos livros, que só vemos nos filmes, que, quando muito, ouvimos nos noticiários e viramos a cara para não ver.
Estavas bem-disposta. Na altura, pensei, excessivamente bem-disposta.
Há imagens que me ficaram, nomeadamente a tua, sentada no crematório, numa espécie de fila de espera porque só entra um caixão de cada vez, óculos enfiados na cara, saia no teu corpo redondo, telemóvel sempre à mão, um olhar mais distante que todos os que te vi. Falavas muito, andavas de um lado para o outro. No velório comportaste-te como a noiva que corre todas as mesas para agradecer a presença dos convidados.
Não quiseste que ninguém tivesse pena.
Até ao dia em que me fartei das tuas mentiras, das tuas invenções, da tua maldicência, do teu egoísmo. E disse-te que não podíamos fingir que existia, entre nós, uma amizade. Nesse dia tudo serviu para me lembrares que estava a fugir. Pediste que lamentasse, contigo, a morte do teu pai.
Não tive pena e prossegui. Tínhamos falado sobre o assunto várias vezes, tinha-te dito que não podia viver na dúvida, na desconfiança, sobretudo não consigo chamar amigas às que de mim falam como se não o fossem. Decepcionei-te depois de me teres decepcionado vezes sem conta. E senti que ser amiga pode não ser estar ao lado, mas sim saber quando nos devemos afastar.
Muita coisa mudou na tua vida. Por fora e por dentro. Mudaste como talvez nem tu notes. Eu também mudei algumas coisas, admito. Mas as minhas mudanças - até por causa das fragilidades que te levaram a perder a paciência, que te levaram a acreditar que, no meu lugar, viverias a vida de uma outra maneira - assentam na firmeza, na verdade, no que penso agora valer a pena. Às vezes, muito pouco...
Reencontrámo-nos porque te procurei. Ver-te ao longe todos os dias, saber de ti pelos outros, preocupar-me contigo sem nada poder dizer, ver-te sorrir quando sei que choras... não podia continuar assim.
Mas nada será como dantes.
Ontem, no concerto que recordava o teu pai, estive presente. Lá me sentei na cadeira a precisar de conserto, do Conservatório, cansada, mais morta que viva, à espera que A Paixão Segundo São João, de Bach, não me deixasse cair. E tu vieste. Estavas outra vez de saia. Aliás, era um vestido, que elogiei. Sei que te vestes assim quando precisas que te falem. Fiquei ao teu lado - porque me chamaste - e perguntei-me se não era aquele o meu lugar de sempre, se teria sido correcto deixá-lo vago, se teria sido justa quando me ausentei. Abraçaste-me como se me dissesses - tantas vezes mo disseste - que eu era perfeita. Gostavas de acreditar nisso, não sei porquê. Também te abracei com gosto.
E mesmo quando foste para a primeira fila - esse teu hábito de estar sempre na primeira fila também me afastou de ti - percebi porque o fazias. Há dias em que podemos exigir atenção. Há dias que devemos sentir como nossos. E na primeira fila não se vê mais ninguém diante de nós.... o caminho é sempre em frente.
O Concerto acabou e despedi-me. Mas hoje voltei a pensar em ti.
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