quinta-feira, janeiro 12, 2006

Perfume

Saio do jornal no dia em que combino ir ver o The Corpse Bride com a Samantha, desço a rua periclitante, em cima de uns saltos agulha de sete centímetros que insistem em ficar presos nas falhas da calçada, rebobino mentalmente o que fiz, o que deixei por fazer, há sempre qualquer que fica por fazer, o que devia ter escrito na agenda, porque, sei, amanhã já me esqueci. Estou a entrar no metro quando o vejo à minha frente. Não nos víamos há meses. Sempre é melhor do que da última vez em que estivemos três anos sem nos cruzarmos. Está igual, a pele muito morena, os olhos castanhos atentos a tudo, o cabelo muito curto, um sorriso lindo, mas é principalmente o cheiro que me traz à memória uma confusão de sentimentos, de lágrimas e gargalhadas. Sorrio quando penso que me lembrei dele há poucos dias quando revi o Smoke, que vi com ele no King, e que o encontro no dia em que vou ver Tim Burton, o mestre que ele me ‘apresentou’.

Usa o mesmo perfume há pelo menos dez anos, o mesmo que tinha quando me pediu lume à porta do anfiteatro a meio de uma frequência de direito político, a primeira vez que nos vimos. Cansada encostei-me à parede e deixei-me escorregar até ao chão. Fumei o cigarro lentamente sem conseguir tirar os olhos dele. A subtileza nunca foi o meu forte. Nunca fui conquistada, sempre conquistei. Usa o mesmo perfume que deixava, mais tarde, muito mais tarde, na minha almofada. Vejo-o em flashback de calças de ganga, t-shirt branca e pés descalços, na cozinha de uma casa de praia, enquanto preparava, a meu pedido, o seu divinal frango com canela. Vejo-o de perfil no escuro da Cinemateca onde íamos pelo menos uma vez por semana. Recordo-o nos cafés onde passávamos as tardes rodeados de livros e sebentas que não líamos, porque havia sempre qualquer coisa mais interessante para dizer. Na esplanada de Sta. Catarina onde víamos os dias morrer sobre o Tejo. No miradouro da igreja junto à faculdade, com a ponte ao fundo, enquanto fazíamos planos para a casa que compraríamos ali mesmo. Recordo as lágrimas, foram tantas, durante tanto tempo. Demasiado tempo. Lembro-me do dia em que, depois de um longo período de ausência forçada, imposta por mim, o voltei a ver. Uma tarde de sol em Sta. Catarina, outra vez e sempre, aquele jardim. É, na balança do deve e haver, a minha recordação mais feliz. Talvez não feliz, mas sim apaziguadora. Percebi naquele instante que deixará de o amar. Que eu existia independentemente dele.

É com carinho que o envolvo num abraço sincero, que na altura não chamava assim, nem sabia como chamar, como ele me ensinou a dar há tantos anos, que lhe pergunto pela vida. É com carinho que já no metro sinto o perfume que fica colado à minha cara, o perfume com que adormeço nesse dia, horas depois de o ter revisto.

10 comentários:

Catarina disse...

Merda para ti com posts sobre cheiros de homem que ficam para sempre na nossa memória.
Merda para ti com história de cumplicidades e sedução.
Merda para ti que assim não consigo fazer nada.
Fico envolta nestas palavras, nas minhas próprias recordações.
E não faço nada.

A subtileza nunca foi o meu forte. Nunca fui conquistada, sempre conquistei.

Nem eu...

[está lindo...]

Carrie disse...

A menina Lady tenha tento na língua que isto é um blog de boas famílias. Não arranje desculpas para não fazer nada… olhe que está no forno um post sobre uma certa estagiária e depois é que vão ser elas.

Catarina disse...

era uma merda para ti cheio de respeito!

[estou tramada]

Dia disse...

Grande fulgor literário, minha cara Carrie, aproveita a boleia, escreve, escreve muito entre as notícias que te pagam a renda de casa.
E sim, merda para ti, que a minha cabeça já se pôs a pensar no cheiro dos meus homens (escrevo isto como se fossem muitos, mas eu só me lembro de dois cheiros, como se eles estivessem aqui, no cachecol que não ouso tirar do pescoço porque a minha redacção deve andar a poupar no aquecimento).

Catarina disse...

Eu adoro cheiros.

Anónimo disse...

GOSTEI
GOSTEI MEMSMO MUITO DO Q ESCREVESTE E DA MANEIRA COMO O FAZES.

Leão da Lezíria disse...

Não tenho sapatos com saltos de sete centímetros (que jeito fariam ao meu metro e cinquenta e três...), não sei cozinhar frango com canela (mas sei fazer uns revueltos com farinheira de porco preto que são daqui...), há muito que não vou à Cinemateca, já conquistei e já fui conquistado. E penso o que seria hoje a minha vida se ela não usasse aquele horrível Anais Anais, de Cacharel, que tanto se usava na altura e que tanto me enjoava com o seu adocicado. E gosto de acreditar que o meu bom velho CK One desperta recordações tão bonitas como a sua, Carrie.

Anónimo disse...

absolutamente lindo. soube bem, mesmo bem. beijo de "thanks".

Carrie disse...

É caso para dizer que me estragam com mimos. Aproveitem, leiam e releiam, porque tão cedo não deve haver mais destes. São de produção e tiragem limitada, ao sabor do sentimento e da tristeza, se bem que a última não sei agora de onde vem, nem porque vem. Tem dias, como o sol.

Marta disse...

É, na balança do deve e haver, a minha recordação mais feliz. Talvez não feliz, mas sim apaziguadora. Percebi naquele instante que deixará de o amar. Que eu existia independentemente dele.

Há momentos necessários para ter um ponto final nosso. Momentos em que realmente o vemos com outros olhos. Momentos em que sentimos apenas um carinho especial. Tive há pouco tempo uma noite assim. E desde esse dia que me sinto eu. E me sinto feliz. Sem mágoa, sem ressentimentos apenas com saudades...

Excelente texto, sem dúvida! É reconfortante encontrar a inspiração nos dias mais tristes. Como também a mim me acontece. Apesar de pouco comentar, mantenho a minha assiduidade diária deste cantinho. Obrigado