Mudança
Alguma coisa tem que mudar para que tudo fique na mesma. Só não sei bem o que.
Eu devia ter deixado isto em draft, a marinar, enquanto preparava o estrugido, mas a pressa dá nisto. Frases incompletas, ideias coxas, sem gasolina para chegar sequer ao fim da rua. Depois meto-me a caminho de S. Bento, a pé, passo pelo Príncipe Real, lembro-me de uma tarde de reconhecimento em Lisboa, que começou exactamente ali, de máquina fotográfica na mão, e quando entro na Praça das Flores, já estou em pleno flashback. Há dezenas de fotogramas que passam por um projector de slides imaginário. Cada pedra da calçada, cada árvore, cada prédio, cada loja, traz consigo a memória de dias felizes. Quando subo a escada íngreme em direcção àquele que já foi o meu 2º. andar direito vou mais leve, como se as folhas do calendário tivessem passado em branco pelos meses em que não morei no meu T0 com mezzanine. Mas já não é o meu cheiro, o nosso cheiro, que me recebe quando empurro a porta. Já não resta nada de mim. Passo os olhos pelos móveis, os mesmos, procuro sinais que sei que vou encontrar. Desisto. Interessam-me, os sinais, na proporção exacta da tua felicidade, e essa vê-se nos gestos, ouve-se na voz. Fixo o olhar na janela, o quadrado de alumínio (sacrilégio arquitectónico) sobre o jardim, nas buganvílias por onde, nas noites de Verão, subiam os acordes do piano martirizado pelo vizinho alemão. Mas não era sobre isso que queria escrever. Esses dias estão bem guardados, devidamente acondicionados numa caixinha verde alface, no terceiro compartimento da esquerda a contar da pálpebra direita. Na cómoda das recordações felizes, de sorriso rasgado. Têm o mesmo sorriso que o meu inominável tanto gosta. Também não é ele o tema desta posta. E se aqui cheguei foi apenas porque, a meio caminho entre o Príncipe Real e S. Bento, me lembrei do que queria escrever.
O assunto é a mudança, está escrito lá em cima, e o melhor é cumprir. Já basta o peso na consciência por continuarmos a defraudar as expectativas dos leitores que aqui entram à procura de sexo. Temos pena, mas o que há fica fechado a sete chaves e quando sai em surdina, se sai, fica por ali a pairar na esplanada no Moinho, para os lados de Carcavelos, ou enterrado nos canteiros da varanda da Parede. Seja, então, a mudança. Aquela que começou há quase um ano e que ainda não acabou, que muito possivelmente não irá acabar. A culpa foi do corte de cabelo. Não, a culpa foi do ‘ex’ que não via há anos e que disparou, sem apelo nem agravo, com um estás velha. Tive vontade de responder e tu uma baleia, mas percebi que se o problema dele tinha solução, o meu dificilmente sairia dos cuidados intensivos. Depois sim, veio o corte de cabelo, veio a metamorfose de guarda-roupa, os ganchinhos coloridos, e veio o sorriso. Mas sei que a mudança não é só exterior - essa está arrumada até que soem as sirenes e os carros de bombeiros me levem trôpega até ao N -, o problema está na outra, mais profunda, mais dolorosa, mas também mais consequente. É essa que ainda não acabou, que possivelmente nunca irá acabar, como não acaba uma tarde numa mesa de mármore de um café com história.