Sua Excelência, a própria
Irrita-me profundamente a excelência. Solenemente. Porque não a tenho. Da mesma forma que me irrita um Aston Martin porque não é meu. Talvez por isso a Natureza também me deixe irritado. Incapaz de conseguir alcançar qualquer matiz das suas cores, embirro com a paleta dos rios e dos vales, dos montes e dos céus, do arvoredo que o gentio gosta de respirar e de sentir como seu. Vi o pôr do sol em Havana, fui a custo conduzido por motoristas solícitos na imensidão da avenida Tiananmen, em Pequim; deixei-me fotografar como um tonto à sombra tutelar da Sereia de Copenhaga; percorri vezes sem conta (e até a pé, imagine-se!) a avenida Atlântica que serpenteia e acrescenta forma à paisagem única de Copacabana; adormeci ao néon do cosmopolitismo de Seul; e como se tal não bastasse, todos os dias me enlevo com a silhueta de Lisboa. Tudo coisas e sítios, e sítios e coisas que a Mãe Natureza, condescendente, coloca à inteira disposição deste filho que tarda em ser pródigo. Vem tudo isto a propósito da excelência que encontro na espontaneidade dos elementos, sendo porém verdade que a que mais me incomoda é a forjada no cerne da genialidade. Vem tudo isto a propósito de ter folheado (apenas) e lido ao perene acaso as palavras que um dia foram de António Lobo Antunes e que o outrora médico (para sempre médico?), num acto de (involuntária?) generosidade achou por bem, ou achou apenas, partilhar com os que as procuram. Já vai na terceiro livro de crónicas, o Mestre. E é na distância do seu tacto que me dou conta uma e outras vezes (e sempre) que se há um Deus (qualquer que ele seja), estava seguramente a despacho quando nasci, e tinha já despachado quando António Lobo Antunes nasceu. Nasceu, não: foi dado à luz, na exacta medida em que hoje dá à estampa o olhar sem pares que torna os cinco sentidos da sua obra, no desânimo sentado dos que, como eu, mais não podem fazer que não seja admirá-la. Graças a Lobo Antunes, sei hoje o que é um vaso, uma rua, uma sombra, uma epístola, um momento, um instantâneo que não consegue ser efémero. É excelente, o Mestre Antunes. Não o ser é o antónimo mais que perfeito de quem sabe resignar-se. Mas que muito, lá isso custo. E se, como disse um dia Alexandre Koyré, o Homem é um ser que caminha para morte, talvez a leitura de António Lobo Antunes nos revele algo ainda mais doloroso, ainda mais frustrante: que o Homem é um ser que nunca soube ter vivido.
P.S.: este texto é de Graça, mas não é gratuito. E não foi ela que o escreveu. Foi um inimigo da excelência que o fez.
3 comentários:
Porque raio querias tu um Aston Martin se não tens carta?!?
Porque raio há mãos masculinas numa Cidade de Gajas? Salva-te o facto da 'posta' estar muito boa!
Excelência:
Não será uma provocação à ira dos Deuses irritar-mo-nos com a beleza magnífica de um Old Bushmills a desoras, um Cohiba Lanceros calmanente fumado, uma peça (qualquer uma) de Tchaikovsky ou de Van Gogh ou de Eça? E não será blasfémia irritar-mo-nos depois de tragar um Pêra Manca, acompanhando um naco de carne de boi?
Samantha:
Não pude deixar de reparar na hora a que foi escrito o post. Espero que tenha sido enviado a partir de um cyber-café...
A mim, pessoalmente, irritam-me os erro ortográficos.
Irritarmo-nos e não irritar-mo-nos, caro Leão. A Lezíria e as companhias nos carrinhos de choque andam a estragar-te...
Já agora... estas desoras de hoje são no meu local de trabalho.
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