segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Inconsequência dos actos

Há qualquer coisa que não está bem. O sol que passa pela janela é dos tímidos, não está para grandes confianças, não aquece, não deixa os corpos em brasa, mas as borboletas insistem. Não deviam ter vindo. Não foi isso que combinamos. Tinham prazo de validade. Dão-se mal em climas frios. Mas vieram. Entraram no avião à socapa, acomodaram-se na última fila da classe executiva, num lugar com vista para a noite do Rio, e eu sem dar por elas. Sei que foram evocadas no Lounge da Varig, sei que dei um salto na poltrona. Ninguém ouviu, ninguém percebeu, foi apenas uma alucinação, mas eu corei e agradeci por estar queimada da praia. Disse obrigada ao sol que trouxe as borboletas, mesmo que elas só tenham chegado de noite, numa varanda da Lapa. Mas nós tínhamos um acordo. Contrato redigido em papel azul de vinte cinco linhas, assinado perante testemunhas, as minhas e as delas. E elas, as borboletas, no papel de segundas outorgantes, comprometeram-se a vagar o andar quando expirasse o prazo. Elas ficavam quando eu regressasse. Ficavam na caixinha verde alface e não se falava mais do assunto. Se quisessem voar, que voassem em Copacabana. Foi isso que combinamos. Agora, o Vinicius diz-me que a hora do sim é o descuido do não. E eu, que - na noite em que o negro mais branco ou o branco mais preto do Brasil me fez chorar no Canecão - quis escrever uma posta de três letras, só lhe posso dar razão. O Não, era isso que eu ia escrever no meu recado de três letras, que se apresentou na luta com toda a frontalidade, baixou a guarda e touché. O Sim, empunhando o florete e cara escondida na máscara quadrangular, até podia levar a taça que não mudava nada. Ficava tudo na mesma se as borboletas tivessem continuado para a cobertura, se instalassem nas espreguiçadeiras da piscina com vista para a praia, quando as deixei no elevador às 4h30 da manhã. Seriam actos inconsequentes. Daqueles que não deixam nódoa, depois de lavados com sabão azul e branco e deixados a branquear ao sol. O mesmo sol que ainda não tinha nascido quando acordei no céu de Lisboa e vi que as borboletas estavam sentadas ao meu lado. Adormecidas. Acordei-as com um beijo. E agora tenho a certeza que há qualquer coisa que não está bem.

1 comentário:

Anónimo disse...

O que fazer com elas? Acreditar que sobrevivem no frio português ou deixá-las voar para os céus brasileiros, tal como outros voaram em céus azuis, olhando uma paisagem onde o verde se mistura com o amarelo e azul do mar? Que fazer com elas? Se a vida é tão diferente e tão inconstante e se há outras borboletas, de diferentes raças a voar no céu português? Que fazer com elas? Esperar que se transformem numa outra qualquer espécie (que não borboletas), deixar que a natureza siga o seu curso? Que fazer com elas? Para já deixam um sorriso nos lábios e as suas asas incomodam.

A