domingo, março 23, 2008

Avózinha III

'Rezamos o terço duas vezes', diz-me ela. Esteve na cama até às sete e meia da tarde e, mesmo assim, prefere não se levantar. Digo-lhe que sim, que vamos sair, que vamos à Vigília Pascal, a uns 15 minutos de casa. Que vou todos os anos, que gosto, que só lhe faz bem ir comigo. Teme a noite. Tanto como o Calvin teme os monstros debaixo da cama. Pergunta-me se estamos a caminhar para a manhã, já que são oito horas e ela mal se levantou... digo-lhe que não, que a hora é nocturna e que agora só vai ficar mais escuro. A lua está cheia mas, tão alta, que não a vê. 'Cheia de quê?', pergunta-me. Sorrio. Cheia de tudo, avózinha. E a avó, cheia de medo, no percurso que nos leva de casa à Igreja, ela agasalhada, com as três camisolas mais uma interior e o manto por cima com um cachecol meu a afagar-lhe o pescoço. Reclama todo o caminho porque eu decidi tão em cima da hora, porque é de noite, porque ela está muito mal, porque é de noite, porque não dissemos à minha mãe que íamos, porque é de noite. 'Porque teme tanto a noite, avó?' Não sabe.

A Igreja está escura e silenciosa. Entramos antes de todos para que tenha um lugar sentada, à frente. Refila outra vez e diz que só pela madrugada sairemos dali. A Igreja está vazia, repara, ela que nada vê. Ouvem-se os cânticos à porta e as formas luminosas começam a entrar e a deixar ver os limites das batinas brancas. Seguram o círio Pascal, o que dá início a um novo ano litúrgico, o que marca o princípio de tudo, o que assinala a Ressurreição. Vêm aí, alerto. E todos, de velas acesas, caminham em cântico pelo centro da Igreja, dispersando pelos bancos até ali vazios. Enchem-se de ponta a ponta. A Igreja está repleta. Cantam-se Glórias. As luzes acendem-se e substituem as velas.

Toda a cerimónia é de festa. São sete leituras da Bíblia e mais o Evangelho: Da criação do Mundo à libertação do povo do Egipto por Moisés, cada momento é assinalado nesta Vigília de duas horas e meia. O apogeu acontece no Aleluia, o primeiro, em 40 dias. A avózinha canta, mas nem ouve o repique dos sinos, que acompanham as vozes e proclamam um novo dia. Recebemos uma pomba recortada, letra juvenil, diz-nos que 'O Amor venceu'. Ela dá-me a que recebeu e guardo as duas no bolso. O nosso amor também venceu.

Regressamos a casa perto da uma da manhã. Diz-me que vá devagar mas tem, agora, menos medo. Não está ensonada e admite, foi bonito! Ainda não sabe como me deu na cabeça para ir lá. Não sabe que é dos poucos momentos do ano que não gosto de perder. Digo-lhe, mas esquece-se.

Ainda dorme. Espero que acorde para lhe dar banho e seguiremos para almoçar. Agora em família. É Domingo de Páscoa, avó! Mais valia termos rezado dois terços em vez de termos saído à noite. Mais valia...

3 comentários:

CITRA disse...

Toca-me a forma como escreves sobre a tua avó. Também eu queria estar hoje com a minha avózinha. Queria ter estado com ela na 6ª feira, dia do aniversário dela, queria ter ido à Via Sacra e ter hoje cantado as musicas na missa a que estou acostumada. Mas estou longe, numa terra onde neva, faz frio e não tenho nada com que me identifique.
Fiquei ainda com mais saudades da minha avózinha.
Parabéns por tomares tão bem conta da tua avó. Felicidades para as duas.
Boa Páscoa. Aleluia!

Catarina disse...

Bom saber que ainda alguém ama assim cuidadosamente uma avó...

LurdesMartins disse...

Já te disse várias vezes que te adoro ler enão me canso de o dizer: ADORO LER-TE!
Estes textos sobre a tua avó são do mais ternurento que pode existir. Aproveita bem a sua companhia pois quase 93 anos já são muitos anos...

Um beijinho grande para a tua avó (eu nunca conheci as minhas) e outro para ti, que és tão genuína e que escreves tão bem.