domingo, julho 09, 2006

Arrumações

Arrumo o passado em grandes folhas negras. Instantâneos de outros tempos. De outras vidas. Uma varanda com vista para o Pico do outro lado do Canal. Apanho margaridas cor-de-rosa. As mesmas que depois prendo no cabelo. Sempre com um sorriso. A areia negra das ilhas que me escapa por entre os dedos. O mar a bater violentamente contra as escarpas. A atracção do perigo. Olho para estes momentos de uma forma diferente. Há um ano, quando os guardei dentro uma caixa, não tinha ainda lido ‘as duas águas do mar’. Só hoje me apercebo das nuances criadas pelas imagens do livro. Eu, sentada à porta de um museu que nunca abriu, espreguiçando-me. De perfil. Sempre com um sorriso. O azul da camisola é a continuação do céu e contrasta com o verde da relva. De costas para a objectiva, na contraluz do dia que termina. O mapa meio dobrado no tablier do carro. Um moinho vermelho sobre o atlântico. Só os olhos não riem quando levo a mão ao cabelo. Um barco ancorado no cimo de uma escarpa. Longe do mar, longe de tudo. A travessia do canal com o céu pintado pelo dourado do pôr-do-sol. Vacas indolentes em pastagens verdejantes. Campos da bola sobranceiros ao mar. A terra vermelha junto às vinhas. O cume encoberto por um nevoeiro cerrado. Os olhos não riram nesses dias passados no meio do oceano. Era o princípio de uma nova vida. Mas era também o fim. Arrumo o passado em grandes folhas negras no dia em que percebo que há coisas nesse passado que me fazem falta.

2 comentários:

Anónimo disse...

oh foda-se... voltámos ao saudosismo e à nostalgia!

(chegou o outono?!)

mac disse...

felizmente para toda a gente que temos um espaço que não termina, para guardar todos os passados em são convívio com o presente.
passado não é (nem nunca poderia ser, n'é?) para arrumar.
é para guardar as coisas boas, ao lado das coisas que aprendeste e deixar de lado as coisas que foram menos interessantes.
e sabes porque temos espaço que não acaba para guardar tudo isso?
porque não são iguais nem maiores ou menores, os nossos passados e os nossos presentes. nem sequer um presente de sonho abarca todas as coisas boas dos teus passados. o que fazer com esta aparente insatisfação?
de vez em quando, vais à caixinha e espreitas as coisas boas e revives os dias de que tanto gostaste.
é que, sem desmerecer os presentes, os passados têm todos um valor insubstituível.
é a delícia de não parar de viver.