segunda-feira, julho 31, 2006

Certezas

Sento-me à beira rio. Pés descalços no mármore aquecido pelo sol. Não devia. Aqui há baratas. Lembras-te da noite das baratas? Do meu riso infantil. Do teu medo irracional. Como é que alguém do teu tamanho pode ter medo de baratas? Nojo sim, mas medo? Sempre disse que havia de escrever sobre as baratas. Sim, sei que prometi não o fazer. Mas agora não faz mal, não achas? Ninguém vai perceber. Há muito que deixei de escrever para ti. Há muito que deixei de vir a este rio por ti. Está tudo devidamente armazenado. Só as coisas más teimam em sair. Não! A culpa não é tua. Já nada desse tempo dói. Ficaram só as memórias felizes a boiar entre flocos de esferovite dentro da caixinha verde alface, onde se lê ‘handle with care’. O mal está em mim. Acho que foi um vírus que apanhei. Talvez no pólen das flores da primavera passada. Qualquer coisa que comi. Não sei. Se fosse ao médico, o senhor de bata branca [podia ser o otorrino do Santa Maria, um homem de olhos cor de mel que um dia me quis operar e a quem ainda hoje me arrependo de não ter convidado para sair. Devia comer sardinhas. Revi-o quando lá voltei com a H.R. porque ela tinha espetado uma espinha na garganta] diagnosticava-me uma virose. Uma daquelas doenças que não entendem [reparo agora que uso cada vez menos o verbo perceber, ainda que sejam sinónimos. Apanhamos facilmente os tiques de linguagem dos que nos estão próximos. O L. dizia que era sinal de perda de personalidade, mas o L. enganava-se em tanta coisa], que não se encaixam nas letras alinhadas dos compêndios escolares, e por isso nos despacham com uma caixa de antibióticos. Para tomar de 12 em 12 horas. Mais uma caixa de aspirina para as dores. Mas este é um mal que não dói. Limita-se a moer, lentamente como quem faz farinha. Aposto que se apanhasse cada grão, cada partícula... Esquece. Não era nada disto que queria escrever. Isto não era uma prosa triste. Começou com o riso por causa das baratas e tem que passar pelo sol que deixa nas águas um tom prateado. É um post sobre a paz que me invade sempre que me sento no mármore que desce para o Rio. Mesmo que do outro lado não existam montanhas ou campos verdes. Mesmo que o burburinho incessante seja de carros e não de pássaros. É um post sobre a clareza, tão diferente da cor das águas que correm para a foz, com que vejo a vida. Uma prosa sobre a certeza de que tudo acaba bem. E se não está bem, é apenas porque ainda não acabou. É um post sobre esperança e a certeza de um amor.

2 comentários:

Ladybug disse...

É um post muito bonito.

Miss Kin disse...

Eu prefiro ñ pensar assim, pq pode ser q, uma parte ñ esteja bem, mas a outra já nem se lembre (a memória fraca dos homens é fantástica) e quando isto acontece, acabou e acabou mesmo.

Só é mais difícil quando ficam coisas por resolver, mas se passa o tempo e ñ há abertura para serem resolvidas, resta-nos a resolução própria, como se feita por uma borracha, mesmo daquelas q ñ prestam e acabam por desfazer um bocadinho o papel, mas fazer o quê?