terça-feira, fevereiro 28, 2006

Horóscopo a granel

Confesso que não resisto a ler horóscopos (como alguns milhões de pessoas que se pelam por estes oráculos da modernidade), embora tenha aprendido a distingui-los da astrologia. Esta faz uma leitura do nosso mapa de características, ditado pela conjugação de corpos celestes no momento em que nascemos. Pode parecer uma cena pseudo-zen, mas eu conheço o meu e revejo-me nele. Já os horóscopos têm aquele potencial insidioso de nos levar a olhar com desconfiança a semana que se advinha. Principalmente quando são escritos a granel! Enroscada no sofá a folhear as várias revistas/suplementos dos jornais de fim-de-semana, dei-me conta que muitos dos textos são copy/paste uns dos outros! Ora, já não basta a maior parte das vezes as profecias não serem muito diferentes entre cada um dos signos, como ainda levamos com dose dupla ou tripa das mesmas previsões. Nem a meteorologia é tão repetitiva! E se eu já achava que andava a gastar demais, começo a temer a bancarrota. E se as dores nas costas me faziam pensar que a idade pesa, prevejo que não haja xiatsu que me livre do reumatismo. E pior, claro, as discussões com a cara-metade tomam proporções de me deixar à beira de um ataque de nervos. Vá lá, caros estudiosos das estrelas, das cartas, búzios e afins: puxem pela imaginação e não escrevam textos a granel. É que a gente gosta de saber o que nos espera, mas sem ficar esmagado pelo peso da repetição. É que eu não acredito em bruxas, mas que as há, há.

Gostamos de filhos da puta

“As mulheres gostam de ser maltratadas.” A frase, como em todas as generalizações peca por excesso, mas tem, há que reconhecer, o seu fundo de verdade.

Haverá quem goste efectivamente de ser maltratado, sem aspas. Mas isso tanto se aplica a mulheres, como a homens. Só assim se explica que apesar da banalização das campanhas contra a violência doméstica, as denúncias por maus tratos estejam ainda longe do ideal. O medo de represálias não será sempre a barreira que impede de denunciar o agressor. Há aqui um gostar que ultrapassa os limites do senso comum, do razoável. A irracionalidade explica o amor. Mesmo quando esse amor consume e deixa mazelas físicas e psicológicas.

Mais à frente o Imperial explica-se melhor… Incrível como o excesso de amor, de atenção e/ou carinho pode ter efeitos devastadores. De lesa a relação. É verdade. Quem me conhece sabe que sou assim, tipo fotocópia, sem tirar nem pôr. Aqui, o que o Imperial chama de "maus tratos" é o simples desejo de que não nos façam todas as vontades, que não estejam excessivamente disponíveis, que dêem luta. Não gostamos de homens que não saibam dizer que não. A subserviência é, ela sim, “de lesa relação” . Na verdade não gostamos de homens ‘boa pessoa’. Gostamos de filhos da puta. De homens que nos tiram do sério, que nos trocam as voltas, que nos surpreendam. Para o bem e para o mal. E aqui não somos diferentes dos homens. Tentem dizer que sim a tudo, passar-lhe as camisas a ferro, cozer-lhe as meias, levar-lhe as pantufas e a cerveja para a frente da televisão, desistir de uma noite a dois em troca de receber os amigos (dele!) lá em casa para um jogo de cartas, enquanto lhes servem uísque e amendoins, comprem-lhe a roupa, escolham que as gravatas… façam isso tudo e podem ter a certeza que ele fica, mas o mais certo é ganharem um filho e não um Homem, com H grande!

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Entre um blog e outro*

O primeiro sinal de que o outro conquistou uma certa intimidade connosco manifesta-se quando na lista de contactos o seu nome deixa de ter apelido.

Num grau mais avançado, o outro perde as restantes letras do seu nome e passa ser apenas uma inicial, à boa maneira de Stendhal.

(...)

A afeição é proporcionalmente inversa ao registo de nascimento.

* Porque é uma teoria comprovada na prática, porque nos Tristes Tópicos há muitos outros posts bem escritos, porque não tenho tempo, nem paciência, nem ideias, para vos oferecer nada da minha lavra.

Sua Excelência, a própria

Irrita-me profundamente a excelência. Solenemente. Porque não a tenho. Da mesma forma que me irrita um Aston Martin porque não é meu. Talvez por isso a Natureza também me deixe irritado. Incapaz de conseguir alcançar qualquer matiz das suas cores, embirro com a paleta dos rios e dos vales, dos montes e dos céus, do arvoredo que o gentio gosta de respirar e de sentir como seu. Vi o pôr do sol em Havana, fui a custo conduzido por motoristas solícitos na imensidão da avenida Tiananmen, em Pequim; deixei-me fotografar como um tonto à sombra tutelar da Sereia de Copenhaga; percorri vezes sem conta (e até a pé, imagine-se!) a avenida Atlântica que serpenteia e acrescenta forma à paisagem única de Copacabana; adormeci ao néon do cosmopolitismo de Seul; e como se tal não bastasse, todos os dias me enlevo com a silhueta de Lisboa. Tudo coisas e sítios, e sítios e coisas que a Mãe Natureza, condescendente, coloca à inteira disposição deste filho que tarda em ser pródigo. Vem tudo isto a propósito da excelência que encontro na espontaneidade dos elementos, sendo porém verdade que a que mais me incomoda é a forjada no cerne da genialidade. Vem tudo isto a propósito de ter folheado (apenas) e lido ao perene acaso as palavras que um dia foram de António Lobo Antunes e que o outrora médico (para sempre médico?), num acto de (involuntária?) generosidade achou por bem, ou achou apenas, partilhar com os que as procuram. Já vai na terceiro livro de crónicas, o Mestre. E é na distância do seu tacto que me dou conta uma e outras vezes (e sempre) que se há um Deus (qualquer que ele seja), estava seguramente a despacho quando nasci, e tinha já despachado quando António Lobo Antunes nasceu. Nasceu, não: foi dado à luz, na exacta medida em que hoje dá à estampa o olhar sem pares que torna os cinco sentidos da sua obra, no desânimo sentado dos que, como eu, mais não podem fazer que não seja admirá-la. Graças a Lobo Antunes, sei hoje o que é um vaso, uma rua, uma sombra, uma epístola, um momento, um instantâneo que não consegue ser efémero. É excelente, o Mestre Antunes. Não o ser é o antónimo mais que perfeito de quem sabe resignar-se. Mas que muito, lá isso custo. E se, como disse um dia Alexandre Koyré, o Homem é um ser que caminha para morte, talvez a leitura de António Lobo Antunes nos revele algo ainda mais doloroso, ainda mais frustrante: que o Homem é um ser que nunca soube ter vivido.

P.S.: este texto é de Graça, mas não é gratuito. E não foi ela que o escreveu. Foi um inimigo da excelência que o fez.

Um xilofone no Carnaval

As gentes da terra sairam à rua e juntaram-se à beira da estrada para ver passar o cortejo. Ouvia-se música, misturada, brasileira e portuguesa, a do costume nestas datas. Mas nenhuma da que chegava aos meus ouvidos me alegrava. Não gosto do Carnaval há muito e hoje, só um xilofone me fez sair da cama para fazer quilómetros até Samora Correia.

Subi à janela de uma casa amiga, procurada ao acaso, mas bem recebida, e ali fiquei à janela, a vê-los passar. Primeiro uns, com carros com bois em cima montados, não verdadeiros, mas imponentes para provar que a terra é ribatejana... depois da tourada, poderia ser a vacaria a chegar, se as meninas não tremessem tanto de frio e se pudessem sorrir à falta de um copo de leite quente. Voavam as plumas, aconchegavam-se as lantejoulas ao corpo, colavam-se os tules de festa a uns rostos arrepiados e encardidos por pinturas gastas, talvez arrependidas por ali andarem em cortejo... sem assim conseguir cortejar...

Passaram mais. Animais e coloridos. Monstros e reis da festa.

Até que chegou o meu xilofone. Vinha toda ela tapada pela base esponjosa que dá forma ao instrumento, cabelo amarrado para não cair no 'sol' errado, collants quentinhos para não tocarem no 'dó menor', e o sorriso de quem é, já por si, música para tanta gente, e nem precisa de dançar.

O meu xilofone tem 8 anos e toca-me. Estava preocupada com o cortejo, com os outros instrumentos, com os outros xilofones, com perfeição dos movimentos, com o sucesso da passagem... porque o treino tinha sido árduo e as noites sonhadas na pele de um instrumento musical afinado. Nos outros procurava sorrisos. Mais para descansar o dela, que para espelhar-se neles.

O nosso encontrou-se e gravei o momento. A música fez-se ouvir melodiosa. Mas acho que foi só no meu coração. Soaram os acordes que me fizeram feliz, esta tarde.

sábado, fevereiro 25, 2006

'Não fofas' da blogosfera, uni-vos!

Eu odeio que me chamem fofa. Fofinha então é de fugir. Eu não gosto de fofuras, e só admito a palavra de mente - e não de perna - aberta, quando se refere a uma opção sexual, escrita com erro ortográfico.
Logo, eu digo 'NÃO' às fofas.

Eu não invejo as fofas. Elas passam demasiado tempo no cabeleireiro, a comprar roupa - às vezes da Zara, mas ninguém se importa, desde que seja curta - a escolher um verniz que dê nas vistas, a pintar o cabelo e os olhos, a depilar as sobrancelhas à pinça, a fazer poses em frente ao espelho...

Eu não gosto delas, mas não é por causa disso. Eu também gostava de ter tempo - e dinheiro - para ir à depilação de duas em duas semanas, para acertar o 'olhar', para corrigir as rugas de expressão (as de má expressão), para vestir tudo a combinar e nas medidas certas do meu corpo, para pôr o meu corpo na medida certa das roupas pequenas, para tirar a celulite, para nao ter cabelos brancos, para muscular braços e pernas, para sorrir como se estivesse a beijar...

Eu não gosto delas porque elas não fazem isso para ser melhores. Fazem-no apenas para agradar aos outros. (Algumas para ganhar dinheiro, e isso é trabalho!) E assim fazem com que todas as não fofas do mundo, quase sempre casadas, namoradas, amantes, amigas... de homens sem interesse nenhum a nível físico: ou porque têm barriga, ou porque estão carecas, ou porque estão flácidos, ou porque têm bigode, ou porque vestem a mesma camisa três dias seguidos, ou porque calçam chinelos para ir ao pão... elas - as fofas - fazem com que todas as não fofas se sintam culpadas por não serem 'fofas' para homens destes! Faz sentido????
Claro que não.

Já todas ouvimos coisas do género: 'estás a ficar com 'buço', querida'
Mas quantas de nós já tivemos a coragem de dizer: era bom que o dentista te limpasse o tártaro desses dentes, amorzinho. Estás com um hálito horrível.

Ficam chateados, pois claro que ficam.
E lá vão eles pegar na consola (que vem em grandes caixas e não nas pernas de ninguém) para uma noite à frente da televisão. E nós, tão queridas - mas não fofas -fechamos os olhos para mais uma noite de sossego, porque tivemos 'pêlo na venta'.

Alem disso, temos a capa só para nós. Com um edredão lá dentro.
Boa noite.

A função social das fofas

Querida Charlotte, estive a pensar na fofo da capa e cheguei à conclusão de que, se calhar, estamos perante um caso da tão badalada "função social" dos media. Vejamos:

- com uma fofa na capa, a revista vende certamente mais. O que é bom para a economia, para o sector e para os trabalhadores da empresa e respectivas famílias. A fofa é assim um motor de desenvolvimento económico e de estabilidade financeira e social.
- o facto de, mesmo assim, a teres entregue à tua cara metade, apenas comprova mais uma vez a tua maturidade emocional. O mérito é teu, mas se a revista tivesse um micro-chip na capa, em vez da fofa, não te teria permitido fazer tal prova.
- As fofas das revistas são o sustentáculo de qualquer relação. São muito engraçadas, mas não o põem o jantar na mesa.
- Ao destacar uma fofa num meio predominantemente masculino, essa revista é um excelente exemplo de diversidade e igualdade de sexos. As fofas também são gente e se lhes apetece ter uma consola no meio das pernas, têm esse direito independentemente das motivações.
-Em última análise, tal como no caso dos tão polémicos cartoons de Maomé, o que está aqui em causa é a liberdade de expressão. As fofas também têm direito à vida!

Tomei a liberdade de roubar descaradamente esta fotografia na net para te provar o quão mais interessantes as revistas de culinária poderiam ser. Entre um pernil de porco e a Maria de Lurdes Modesto, este fofo seria certamente um sucesso editorial. E olha que eu gosto bastante de pernil...

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

A "fofa" da capa

A mais recente revista chegada à nossa praça tinha uma rapariga em langerie, de saltos, com as pernas abertas, entre as quais tinha as mãos a segurar uma consola de jogos. Supostamente é uma revista sobre novidades informáticas e gadgets electrónicos. Eu recebi essa revista na minha caixa do correio (porque assino outra do mesmo grupo)e pensei: "Ora aqui está um tema que a minha cara metade gosta", e depois: "Mas porque raio tem uma gaja quase nua na capa?". Bom, é claro que eu sei porque é que tem, mas mesmo assim arrisquei e entreguei-a ao meu marido, que é um tipo doido por estas coisas da electrónica. "Além da "fofa" da capa, isto tem coisas giras, mas é tudo muito caro. Acho que não vale a pena assinar", diz ele ao fim de 15 minutos. Bom, reparem que ele disse aquilo da "fofa" à minha frente, com naturalidade, o que me levou a acreditar que não vai tentar arranjar o telefone dela. Ainda pensei esfregar-lhe a dita "fofa" no nariz, mas isso não era obviamente de meu proveito a curto e a longo prazo. OK, pelo menos não quer assinar a revista, o que também me parece bom sinal. Percebi que nem a "fofa" da capa era suficiente para angariar um novo assinante. (Ou será que ele vai fazer uma vaquinha com os colegas e partilhar a capa das futuras "fofas" com eles, naquelas horas em que dizem estar a acabar um trabalho (normalmente lá pelas duas da manhã)?. Mas por que raio uma revista de electrónica e informática tem que ter uma fofa? Aquilo é sobre PDA´s e televisores do tamanho do meu guarda-fatos! Acho que vou fazer um projecto de revista sobre culinária com um "fofo" a segurar uma colher de pau. Ou uma sobre rendas e bordados com um "fofo" a segurar na agulha de crochet. Aposto que vendia, ai se aposto!!!!

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

No Carmo

dão-se pérolas a porcos. Pelo melhor preço.

Memórias

Algures entre a Mitrena e Setúbal, com o rio a correr para a foz do meu lado esquerdo, com a vista de Tróia mais ao fundo, abri a caixinha verde alface. Fui buscar recordações felizes de um dia de Primavera. Um almoço na Comporta. Jornais e confidências partilhadas. Houve lágrimas, não minhas, que não pude secar. Caminhei pela areia molhada durante muito tempo, respeitando um espaço que não me era pedido, mas que concedi de bom grado. Voltei, lágrimas já secas, recebida por um abraço sincero, que valeu mais do que qualquer palavra dita antes e depois. O rio corria do meu lado esquerdo… e antes do porto de Setúbal a tampa da caixinha verde alface fechou-se de rompante. Fez um estardalhaço enorme. Embateu nas prateleiras dispostas ao longo da pálpebra esquerda e fez saltar outras memórias. Percebi como duas pessoas podem ser tão diferentes. Logo nós que nos achamos tão iguais. O rio não parou de correr, mas o sangue gelou-me nas veias. Compreendi pela primeira vez que nunca poderei contar contigo. Procuraste a saída mais próxima ao primeiro alarme. Enquanto eu, nesse dia longínquo, tenho a impressão que passaram anos, fiquei por ali à espera de poder regressar. Ainda nem tínhamos ligado o 112 e já tu abandonavas o prédio. Depois da derrocada olhei em volta e percebi que estava sozinha. Como agora.

A gerência

A gerência faz saber que esta Cidade sem Sexo está perto de atingir o post nº 500. Mais se informa que a bloguista que tiver o privilégio de publicar o dito terá direito a um presente.

[A minha pessoa vai retirar-se para o cantinho para não viciar o resultado. Até já.]

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

O amor

"Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. orque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas,farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.

Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.

Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo.

O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A"vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária.

A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe.

Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Miguel Esteves Cardoso in Expresso via Um quarto com vista

Sem explicação

Pergunto-me em que momento da vida passei a ter consciência. Abro a agenda e folheio-a de trás para a frente. Quem sabe se não terei marcado a data a vermelho. Nada. Nem em código. O código infantil que uso para registar as coisas mais importantes. As lágrimas são de raiva. Não me consigo lembrar do dia em que passei a temer as consequências dos meus actos na vida dos outros. Faço o eixo norte-sul a 120, música aos berros para não pensar. Quero reagir às lágrimas. À raiva. Procuro uma explicação para tudo. O princípio. Está um vento cortante junto ao Tejo. Afinal a culpa não é do clima. Não saem as lágrimas. Não vinga a vontade de fazer o que me apetece. A impulsividade é refreada. O cheiro que sinto junto ao meu pescoço é guardado na caixinha verde alface. De vez. Fechei a caixa a cadeado. Deitei fora a chave. Porque não há actos inconsequentes.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

33 razões

... numa ordem aleatória:

1 - o riso da minha avó quando lhe conto piadas sobre doenças que invento...

2 - o cabelo dela pintado de cinza, quase nada, mais cabeça que cabelo, embonecada para ir à missa, a uma festa da família ou para a viagem de férias do costume... com laca q.b..

3 - o orgulho que a minha afilhada tem em mim. Não o esconde. E eu venero-a por isso. Sabe mesmo bem ser 'admirada' como uma diva... Chegará aos 15, assim?

4 - a maturidade que ela tem misturada com um pensamento ternamente infantil. Nada está em excesso. E ambas as formas de estar me fazem sorrir.

5 - a maneira como o meu pai pede um whisky cá em casa.

6 - a forma como a minha mãe evita que ele peça um segundo copo.

7 - as gargalhadas do F. quando partilhamos filmes de animação.

8 - os cabelos brancos da F. que lhe dão o tom queque que ela tanto quer evitar recusando pinturas no cabeleireiro. Mas que lhe dão sabedoria.

9 - o marido dela, mais velho de três irmãos, e o tempo que tem para tudo. Mesmo para o que já é repetido.

10 - o do meio e o mau feitio guardado num coração de manteiga que derrete antes do tempo. E a voz dura ao telefone... imitação de actor de western. Ele é que não sabe...

11 - a mulher que para ele (só para ele?) tem (muita) paciência. E uma esperança vindoura que traz consigo. Por meses...

12 - os dentes num riso doce e aos quadrados de uma cabecinha loira que às vezes adormece com o 'Olha a Bola Manel'... Outras vezes não dorme.

13 - o passeio familiar com o dinheiro ganho no 'totoloto' e no 'euromilhões' de um ano inteiro à sociedade... e a sensação de 'riqueza' que isso nos proporciona...

14 - a organização maternal para que isto funcione. Isto, e parte da minha vida.

15 - o entardeceder neste jardim de Belas...

16 - Uma leitura do Ruca às duas da manhã. E não adormeço.

17 - As chamadas acumuladas a que não consigo responder, mas que são sinal de que quiseram falar comigo... e conheço todos os nomes.

18 - o stress antes dos programas e a certeza de que vai tudo correr bem. Mesmo se me irrito com as pequenas falhas.

19 - os projectos para mudar o mundo através de uma caixa cheia de vícios. E o acreditar numa mudança, consciente de que não há milagres.

20 - A segunda família. A santa tia, o eterno (e bom) rabujento, o misterioso e atento primo, a simpática e amiga de sempre, o risonho e a bolachinha.

21 - as conversas sobre cinema, livros, e sobre 'Os Homens do Presidente' quando impera o 'Jameson' e eu não passo da coca-cola...

22 - um banho de emersão com sais antigos e um livro antes de adormecer na água.

23 - os livros que a reforma me permitirá ler. E que acumulo com gosto. Até cheiram...

24 - as bloguistas que um dia me levaram ao local onde sempre tinha ido. Mas que fizeram dessa uma primeira visita. A vontade de querer continuar a ir com elas.

25 - a esperança (e a vontade) de afastar os fantasmas.

26 - a consciência tranquila. E um passado.

27 - as cores de um mar que cruzo para ver uma amiga. E a pronúncia dela quando me vê...

28 - o cozido à portuguesa e a picanha.

29 - as memórias de uma infância feliz e polvilhada de gente. Memórias de cantos e grupos, e orações, e amizades, e promessas e sonhos... os que ficaram dessas andanças. A D., em especial.

30 - as viagens que já fiz, as que ainda quero fazer, e as que nunca deixarei de repetir. Mesmo que apenas as reveja nas fotografias.

31 - o encorajamento vindo de todos os lados, mesmo quando as olheiras já tapam parte do meu rosto. Os que reparam em mim todos os dias.

32 - o meu refúgio com luzes ténues, velas que cheiram, música que toca, e agora este portátil... sozinha.

33 - saber que posso encontrar mais razões para continuar.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

um iceberg no dia do aniversário. Derrete!

Oiço o gelo derreter na cozinha. São quase três da manhã e há horas que caem pedaços num alguidar azul. Outros derretem antes de chegar ao chão e seguem um trilho que os deixa pingar como lágrimas. Quando acabar de derreter o gelo arrumo as gavetas. Pus tudo em caixas tupperware, sem precisar de identificar o peixe, a carne e o empadão. Hei-de tirá-los à sorte e comer, saborear todos da mesma forma, porque a todos guardei de igual maneira. Para as ocasiões.

Assim vos guardo a vocês Carrie, Miranda, Charlotte. Porque nenhuma de vós congela a ponto de me fazer fechar as caixas. Não preciso de arrumar-vos por partes. Sei que cada uma derrete a seu tempo, solidifica quando é preciso, custa mais a picar de quando em quando - mas nunca chamámos o Michael Douglas por causa disso - sei que às vezes gelamos juntas, e duvido que o nosso calor, todo junto, não pudesse contribuir para o aquecimento global.

Cada uma de vós, amigas, representa o que o gelo tem de melhor - lamechice, aí vem ela! - ora o bilho, ora frescura, ora a gota a escorrer nos lábios secos, ora a deslizar sobre as águas sem um destino certo.

O gelo às vezes entra-nos pela alma. Solidifica-nos e mantém-nos quietas muito tempo. Ora por medo, porque o gelo tem lascas e magoa, pica; ora por pudor de destruir tão bela forma da natureza, ora por temermos chocar contra ele e isso vai doer, fazer barulho, fragilizar.

Por agora ainda gelo. Mas já aqueci o quarto e conto ter a cama quente quando lá entrar. Espero sonhar com o um País onde os hotéis do gelo são baratos e eternos, e o calor humano de borla. Eterno, também ele.

Esta amizade será assim.
nem que seja no quentiho das nossas salas, 80 anos, chá de camomila à frente, a recordar os miúdos do Titanic e como tantos resistiram ao iceberg.

tenho sono.
hei-de voltar.
não me deixem arrefecer o lugar.
obrigada às três!

sábado, fevereiro 18, 2006

Quinta e sexta mãos

Foi com algum atraso que se juntaram mais duas mãos às quatro que escreveram o post anterior (ver as 12 linhas acrescentadas com muito carinho). Resolvi criar um novo porque aquele espaço tinha um propósito muito especial e não o queria misturar com outras prosas.
Não há uma boa justificação para uma certa (vá lá, grande) ausência dstas lides, a não ser que é uma bola de neve de receio, descuido e cansaço. As mesmas razões que me impedem de cultivar outros bons hábitos, os quais tenho a certeza que me trariam grandes recompensas. A inércia é uma sacana, a angústia dá-me cabo do juízo e o medo é um carrapato. Haja genica para sacudir estes penduras da minha vida. Até porque quando os consigo enfiar num saco bem fechado, tenho sempre boas surpresas. Venha a Primavera para dar uma ajudinha (e um horário de trabalho compatível) porque este há-de ser uma grande ano. Raios partam o receio, o descuido, o cansaço, a angústia, a inércia, o medo, blá,blá, blá, blá....

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Um grande bolo de aniversário

Gostamos
Realmente de
Alguém quando não
Conseguimos
Amar o mundo sem ela

A poetisa é a Miranda, mas subscrevo na íntegra. O mundo, o meu mundo, é mais pequeno, mais cinzento quando não estás. É uma declaração de amor. Sem pudor. Como as que merecem as pessoas que são para a vida. Toda. Não precisamos de notário. Faltaram as testemunhas. Perdemos a menina das alianças. Mas este Amor será sempre assim. Incondicional. Mesmo quando ficamos mais velhas. Quando questionamos tudo. O que fizemos, o que deixamos por fazer. Quando nos perguntámos se terá valido a pena, se seguimos os caminhos certos. Respostas? Certezas? Não tenho. Se tivesse embrulhava-as em papel pardo com um enorme laço vermelho [mesmo sabendo que preferias a viagem a quatro a NY]. Compensava-te pelos sorrisos, pelas confidências, a paciência, o carinho, as mensagens a desoras, os conselhos, pela amizade... e desculpa a banalidade. Mas obrigada por seres quem és. Sim, continuo a ser a tua maior fã.

Gostei quando a Samantha colocou um "assumidamente" à frente do nome que lhe coube nesta trupe. Gostei mesmo. O advérbio mostrava decisão, fairplay e desprendimento... Que sera, sera, what ever wil be, will be... para o melhor ou para o pior, sem medos. Gosto do riso desbragado a contrastar com um rosto miudinho, da meiguice com que faz comentários mordazes, da doçura com que nos puxa as orelhas. Alguém que é mestre em combinar contraditórios há-de por força saber dar volta ao passado, impôr o rumo a um destino travesso, ser maior que uma grande dor de alma, porque tem uma alma maior que a dor. Eu tenho fé nela, porque me dá a toda a hora provas dessa força. Tem o meu voto de confiança e a minha gratidão. Hoje e sempre, assumidamente!

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

16022005

Quantos segundos cabem num minuto? Quantos minutos entram numa hora? Quantas horas tem o dia? Quantos dias fazem uma semana? Quantas semanas tem um mês? Quantos sorrisos? afectos? ilusões? beijos? lágrimas? olhares? palavras? confidências... Quanta vida cabe num ano?

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Amor é...

Receber um quimono três vezes o tamanho acima, confundí-lo com uma toalha de mesa de Natal e, mesmo assim, usá-lo. Porque no amor, a forma pouco importa!

À espera em África

É considerado um dos melhores jornalistas do século XX e entrou de forma avassaladora para a galeria dos meus autores de eleição. Sei que é polaco e pouco mais me interessa. A mim, Kapuscinski dá-me o mundo. Deixo apenas uma pequena amostra:

"Os europeus e africanos têm noções de tempo completamente diferentes. A percepção que têm do tempo é diferente, como é diferente a relação que com ele mantêm. O europeu está convencido de que o tempo tem uma existência exterior a ele próprio, uma existência objectiva e com uma natureza mensurável e linear. [O africano não] daí que depois de entrar num autocarro, nunca pergunte quando vai partir; entra, senta-se num lugar livre e passa imediatamente a um estado no qual passa uma grande parte da sua vida - à espera. (...) Em que consiste esta espera? Quando entram neste estado, as pessoas sabem à partida o que vai acontecer: escolhem uma posição tão confortável quando possível, num local agradável. Muitas vezes deitam-se, ou acocoram-se no chão, sobre uma pedra ou rochedo. Calam-se. A maioria daqueles que espera, fá-lo em silêncio. Não abre a boca, emudece. Os músculos descontraem-se. O corpo torna-se flácido, afunda-se cada vez mais, inclina-se para a frente. O pescoço fica hirto e a cabeça deixa de se mexer. Aquele que espera não olha à sua volta, não vê nada, não é curioso. Por vezes, mantém os olhos fechados, mas nem sempre. Na maior parte do tempo os olhos estão abertos, mas o olhar é ausente, sem um sinal de vida. Durante horas observei grupos de pessoas que se encontravam neste estado de espera e posso, por isso, afirmar que caem num sono fisiológico profundo: não comem, não bebem, não urinam. Não reagem ao sol implacavelmente quente, às moscas incómodas e vorazes, que lhes pousam sobre as pálpebras e a boca. O que lhes vai nas suas cabeças? Não sei, não faço ideia. Será quem pensam? Sonham? recordam? Planeiam o que quer que seja? Meditam? Será que se encontram num outro mundo? É difícil dizer."

Ryszard Kapuscinski in "Ébano"

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Repetição por motivos nada técnicos*

“Continham-se, reprimiam-se, como amantes jovens e absurdamente orgulhosos, convencidos de que aquele que telefonasse revelaria uma fraqueza, uma desprezível dependência emocional.”
Cães pretos, Ian McEwan

* Ou um post de dia S. Valentim dedicado à Dia.

Banalidades*

Praia de Ipanema, Rio de Janeiro
O dia acaba e deixa no mundo um tom de dourado. Não gosto de fotografias do pôr-do-sol, são demasiado banais. Gosto de fotografar pessoas e objectos naquela luz difusa de fim de tarde. Tenho uma foto linda de um homem encostado a uma palmeira com esta mesma luz. Tenho uma foto quase perfeita porque, como diz o senhor que não percebe nada de fotografia, a composição estava perfeita, não fosse eu ter cortado um dos pés do homem que vê as pessoas andar no calçadão de Ipanema. Esta imagem não é do pôr-do-sol, é a fotografia de um espelho que reflecte ao fundo o dia que acaba. Pior que uma má fotografia, só uma má fotografia explicada…
* Ou post delicodoce

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Quedas

Hoje dei um daqueles 'malhos' que só damos quando estamos na infância. Mas estava sobre uns patins em linha. Na minha idade... talvez tenha desculpa...

Foi uma tarde de quedas. O meu sobrinho de 5 anos também caiu, de bicicleta.

Quando eu já me arrastava nos patins, ao mesmo tempo que carregava a bicicleta vazia, o meu sobrinho, lá atrás, de mão dada com o primo, de 3 anos, disse:

- Sabes... (e virou-se para o mais novo) Cair faz parte da vida.

Pediu então o meu o meu aval à sua afirmação.

- Não é tia?

Disse-lhe que sim. E sorri. Talvez saber isso aos 5 anos o proteja de sustos maiores quando crescer.

domingo, fevereiro 12, 2006

Homenagem

Durante anos a H. foi a minha melhor amiga. Crescemos juntas. Aprendemos juntas. Choramos. Partilhamos confidências e famílias. A vida levou-nos por estradas diferentes. Hoje pouco temos em comum mas mais de uma década de irmandade - porque era isso que nos unia - não se apagam levianamente. Vemo-nos pouco. A culpa é quase exclusivamente minha. Houve um altura da minha vida em que comecei a evitá-la. Despertava-me pouco interesse. Achei que a H. pouco me tinha dizer. Evitei-a.
Em momentos de aflição, a H. liga-me sempre. Eu costumava fugir sem compreender que, para ela, quando tudo estava mal era importante encontrar um ponto de referência. EU

A H. nasceu numa casa cheia.
O pai fugiu quando ela era pequena e ela cresceu a pensar que a culpa tinha sido sua.
Na casa cheia vivia o avô, que ela encontrou morto na cama quando era ainda uma criança que não connhecia a morte.
A irmã mais velha casou com um esquizofrénico diagnosticado que se suicidou no andar de baixo.
Viveu um grande amor na adolescência. Durou anos. Até que os potenciais futuros sogros, de um estrato social avançado, acharam que era altura de o filho encontrar uma mulher ao seu nível. Terminaram.
Por tudo, a H. teve uma depressão. Tentou suicidar-se. Recompôs-se.
Um dia decidiu partir para a Alemanha. Ia à procura do pai. Queria ouvir que a culpa da ausência não era sua.
Juntou dinheiro, partiu e encontrou-o. O pai recusou-se a recebê-la. Partiu-lhe, mais uma vez, o coração e passados dois anos morreu na indigência.
Uma das irmãs da H., que não a mais velha, casou com uma pessoa adorável mas que sofre de um problema psiquiátrico crónico pelo que terá que ser medicado para o resto da vida.
(Quase recomposta) do desgosto de amor, a H. entra numa nova relação que ainda durou algum tempo. Terminaram mas cruzam-se numa passagem de ano. Dois meses depois descobre que estava grávida. Ele promete ajudá-la a fazer o aborto, pagando-o a meias. Não o fez. E nem sequer um telefonema para saber como ela estava.
A H. tirou um curso superior. Já lá vão anos sem que consiga exercer na sua área. Está no desemprego e passa os dias a concorrer a concursos públicos que até agora não deram em nada.
Mais uma relação. Eu gosto dele. É pessoa honesta, sem adornos. Mas deprimido devido a um passado familiar sem explicação.
Em Dezembro a H. telefonou-me. Já não falavamos há meses. O irmão mais novo do namorado tinha cometido suicidio. Na família disfuncional ninguém acreditava no diagnóstico. O namorado da H. estava de cabeça perdida e ela sem forças para mais um drama. E eu com remorsos das vezes que a evitei sob o pretexto de que a H. tinha-se tornado numa pessoa pouco interessante. Na verdade, o que me custava era o peso dos dramas da sua vida. E enquanto eu fugia das dores que não eram minhas, a H, continuava a arregaçar as mangas e a seguir em frente. Com determinação. E foi quando percebi o porquê das minhas ausências, que lhe ganhei um respeito do tamanho do mundo.
Estava a dever-lhe esta homenagem.

Fiz as pazes com a Bethânia

A Bethânia já por três vezes que cantou Vinicius. Recitou o Monólogo de Orfeu, lembrou-me de quando a existência sem ti [era] como olhar para um relógio, só com o ponteiro dos minutos, deixou-me um sorriso nos lábios ao cantar o bom dia, tristeza, e eu soube que [não] foste na vida a última esperança. Deitada no meu tapete vermelho percebi que foste o que tinhas que ser, tive a certeza que é melhor ser alegre que ser triste. Por três vezes a Bethânia cantou Vinicius como não fazia desde a noite em que dançamos Tarde em Itapõa num abraço apertado. Estranhamente, ou não, sobrevivi. Seis meses é demasiado tempo para estar chateada com um CD.

Work in progress

É como está este blog. A gerência agradece a compreensão dos utentes e pede desculpa pelos incómodos causados.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Contra-natura

Concordar [sob protesto] com a decisão dos outros.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Nós não fomos

Nós tínhamos dois bilhetes para os Depeche Mode.
Nós ficámos a trabalhar até tarde. Uma a escrever no pasquim... outra a escrever para a caixa.
Nós não fomos.
E ninguém vai querer saber das notícias que demos.
Podíamos era ter dado os bilhetes.

Isto é serviço público!*

SAÚDE PORTUGAL SEXO DOENÇAS Sexo: Bife com batatas é bom, mas todos os dias enjoa - especialista
Lisboa, 08 Fev (Lusa) - O desejo sexual diminui ao fim de quatro anos de vida em comum, mas um dos truques para manter a libido é utilizar no sexo a mesma criatividade que na cozinha, defendeu hoje uma especialista.
"Por mais que se goste de bife com batatas, comer sempre o mesmo prato da mesma maneira enjoa", disse hoje a ginecologista Maria do Céu Santo durante a apresentação do estudo da Sociedade Portuguesa de Andrologia (SPA) sobre a Epidemiologia das Disfunções Sexuais em Portugal.
O estudo concluiu que a maioria das mulheres portuguesas sofre ou já sofreu um problema de disfunção sexual e que oito em cada cem fingem o orgasmo sem que o parceiro se aperceba.
A especialista da Sociedade Portuguesa de Ginecologia (SPG) lembrou que, ao fim de quatro anos de vida em comum, o desejo sexual diminui.
Um facto que tem outras explicações, além das hormonais.
"Quando estamos apaixonados arranjamo-nos para o parceiro, mas depois de estarmos juntos pomo-nos bonitas para os colegas de trabalho e muitas vezes chegamos a casa e vestimos roupa prática e desarranjamos o cabelo", disse.
Os homens, prosseguiu a ginecologista, optam por não fazer a barba durante o fim-de-semana e parecem porcos- espinhos que picam ao dar beijinhos.
Por outro lado, a rotina e o stress leva muitas vezes os casais a terem menos sexo ou a fazê-lo sempre da mesma forma.
Segundo Maria do Céu Santo, a resposta passa pela cozinha, ou seja, por utilizar no sexo a mesma criatividade que se aplica para transformar um simples bife num verdadeiro manjar.
Outra solução é não deixar o sexo para o final do dia quando "não há força nem para puxar o lençol", disse, recomendando a manhã ou o período anterior ao jantar para as relações sexuais.
Maria do Céu Santo assegura que "a sexualidade altera- se ao longo do tempo e essa mudança é mais acentuada nas mulheres".
Talvez por isso, o ginecologista seja o especialista que mais trata as dores de cabeça, tantas vezes invocadas para recusar uma relação sexual.
Uma situação que afecta cada vez mais os casais mais novos, que "têm menos relações sexuais".
A ginecologista defende um investimento no sexo, pois este transforma as pessoas: "As pessoas bem amadas são felizes e têm um brilho na alma", concluiu.


* Em versão finalmente sinais de sexo neste blog e com o devido agradecimento à estagiária mais linda do pasquim.

Ordem de despejo

As borboletas agarraram no telefone e ligaram. Telefonaram para dizer que perderam as palavras quando se viram retratadas em caracteres escritos a preto e branco. Eu preferia que voassem, as minhas, até ao sol e queimassem as asas. Que cumprissem a ordem de despejo interposta em tribunal. Lá se explica que é para o seu próprio bem, que vão sofrer com o frio. Mas o meu corpo, esquizofrenia pura, como diria a minha amiga Dia, diz-me que é Verão. Sinto-o na pele, nos cheiros, em todos os sentidos. Talvez por isso as borboletas se tenham sobressaltado com a gargalhada provocada pela voz orgásmica que me falava docemente ao ouvido. A voz que dizia aquilo que já sabíamos quando chegaram as borboletas. Mas não ouvi o que me dizia. Ouvi o que queria. Seleccionei as palavras, os silêncios. Mas também sei que não há dois finais para esta estória. Este ‘você decide’ estava viciado à partida. E as borboletas vão ter que sair. Ligo para o corpo de intervenção, mando vir o exército se for preciso, mas o raio dos insectos têm que cumprir a renúncia unilateral de contrato que chegou agora mesmo por email.

Roda da Amizade

Roda que roda
A roda que somos nós
e já sem idade
e sem voz

Seremos Amigos!
Mas Amigos de verdade
na Roda da Amizade!

Aprendi esta música no coro da Igreja. Tinha uns 13 anos. Dedico-a às 'bloguistas' deste mais cidade que sexo. É simples e quase infantil. Como as relações que valem a pena.

Gerações


Cidade do Samba, Rio de Janeiro

O princípio do fim

Saiu sem horas para voltar e levou o telefone. Portátil, porque já era moda e usava-se na mão. Quando a casa já devia estar preenchida pelas duas únicas pessoas que a habitavam, só uma ocupava aqule minúsculo T0. Ainda assim, enorme, àquela hora e naquela noite.

Era tarde. Cedo se pensarmos na manhã que já chegava. Ele não. Ela teclou o número dele para ouvir outra voz do outro lado. Ouviu duas. Uma não era dela. Mas soava a voz de mulher. Ele não falou com ela. E ouve um grito. Ele ouviu o grito. Era o de uma mulher. Talvez da que ainda lhe pertencia. O portátil ficou desligado a partir daí.

E nunca mais nada foi como dantes.

Lei de Samantha*

As pessoas sentem-se atraídas por formas, mas gostam de conteúdos.

*Ou as desculpas que inventamos para justificar as acções das amigas...

O 'meu' Rio de Janeiro

Havia livros para divulgar, um Nobel que ainda não o era - ou que tinha acabado de sê-lo, não me lembro bem - brasileiros, actores para conhecer, portugueses para exibir, bibliotecas para visitar... e algum tempo livre.

Meti-me num avião com lugares vagos em económica e um Ministro lá à frente, com os meus colegas assessores. Eu escolhi a parte de trás porque era melhor assim, acompanhar de perto quem ia trabalhar, quem levava material na mão, o papel e a câmara de filmar, o gravador e a caneta bic. Estávamos em 1998 e havia uma Bienal no Rio. Era a do Livro. Sempre gostei de ler.

Chegámos numa segunda ou numa terça. Parece que foi há séculos e o Rio tem-se apagado da minha memória a cada dia que passa. De propósito. Não costumo gostar dele.

Em Lisboa ficava a velhice de quem já não estava para leituras. Lia-se-lhe nos olhos que o fim estava para vir. Não de avião, como eu fui, mas num rio de lágrimas que depois trouxe.

Ficámos instalados no Copacabana Palace, centro da Avenida, vista fantástica, quarto de ricos sem vista para os pobres. Nada mau, no Rio de Janeiro. Os outros não, os da caneta e do papel ficaram mais à frente, que aquele hotel era caro e o Estado não é gastador, não senhor...

Ainda segui o Nobel a uma bela Biblioteca, centro da cidade, ruas arranjadas, livros em vitrines acabadas de limpar, outros velhos... mas a aguentarem-se. Sobrevivem, creio eu, ainda hoje, ao tempo que passa. Mas não o meu.

Ainda subi ao morro do Pão de Açúcar e olhei para o Redentor, Cristo no alto de um monte que se vê do outro. Ainda tirei fotografias. Não estão muito boas, mas guardo-as...

Ainda passeei pelo calçadão, também calçada porque era já noite, e vi as meninas, as garotas de programa, as prostitutas, os mafiosos, os moleques e tantos mais. Que não me fizeram mal.

Ainda jantei com os actores. Os mais conhecidos das novelas brasileiras, então as mais vistas do lado de cá, os mais sérios e mais antigos, porque os novos e bonitinhos não interessam à cultura. E eu estava culta, nessa noite.

Ainda telefonei para Lisboa. Estável, disseram-me.

Eram seis da manhã quando acordei. Não sei porquê. Os actores tinham-me feito deitar tarde. Foi uma noite mais prolongada com os do papel e caneta que também puderam jantar no Copacabana. E às seis da manhã, 10 da manhã em Lisboa, acordei!

Quando o telefone não foi atendido do lado cá - porque foi a primeira coisa que fiz ao acordar, era ainda noite naquele Rio de 98 - estranhei. Tentei outro, e nada. Tentei o terceiro.

Nesse dia o meu corpo deambulou descalço na praia. Era uma praia deserta, antes do início de uma manhã no Rio de Janeiro. Molhei os pés, sem querer. Virei-me de costas para não ver o mar que me parecia infinito e uma onda apanhou-me. Literalmente. Também o rosto ficou molhado, como agora, sempre que recordo essa manhã.

O regresso a Lisboa foi antecipado. Nessa tarde viajei sozinha em executiva e só a noite e as 10 horas de voo me puderam sossegar.

O meu avô tinha 83 anos. Vivia na minha casa e despedi-me dele antes de ir para o Rio. Senti que não voltaria a vê-lo. Fui na mesma. Muito me arrependi quando percebi que só viria a tempo para o funeral.

Os meus olhos morreram

Morrem todas as manhãs, quando acordo
Não querem ver, nada querem vislumbrar

Os meus olhos morrem todos os dias
Se o corpo vive, eles não
Não abrem quando quero abri-los
Não vêem o que devem ver
Deixam transparecer mentiras
e guardam lá dentro a verdade que desconheço
que não consigo ver

Os meus olhos morreram porque nada os desperta
nada os esbugalha, nada os faz sorrir
nada lhes interessa, não despertam para em nada fixar a atenção

Morrem se os quero abrir. Pesam-me.
Os meus olhos já não dormem porque morreram.
e nem lágrimas deles saem, sinais de vida que não querem provar
os meus olhos morreram
e às vezes custa-me viver sem eles

Carta ao Passado

Caro Passado,

Muito estimo que te encontres bem e de saúde, tu e os teus. Eu por cá vou andando, graças a Deus.

Escrevo-te neste presente porque, convencida que tinhas passado, prossegui a minha vida como se nada fosse, como se o que 'lá vai, lá vai', como se não tivesse, nunca mais, de enfrentar-te. Enganei-me.

Disseste-me que o tempo era a tua forma de deixar de existir. Convenceste-me disso todos os dias em que te invoquei. Lá passou, o tempo, três anos, se queres que seja concreta, e nada. Não te foste embora, como ameaçaste, como prometeste, como chegaste a fazer. Nunca saíste, afinal.

Pergunto-me, caro passado, o que ainda fazes por cá? Não preciso que venhas matar saudades, não preciso que tragas memórias - boas ou más - preferia que ficasses lá atrás, como disseste que farias, como a História prova em tudo o que passa. Caro Passado, julgas-te uma excepção?

Muito gostaria de não voltar a ter-te no meu presente. O melhor será passares de vez, deixares de me perseguir, de me atormentar, de me lembrar que exististe, que fizeste parte da minha vida, que me formaste. Curto e grosso, e não leves a mal estas minhas palavras, deixa-me em paz!

Se à noite penso que o dia de ontem acabou, lá vens tu recordar-me dos outros todos, os que também já estavam passados, mas que, na minha cama, assumem-se como dias de hoje, futuros imaginados, tempos que não passaram. Se de manhã acordo a pensar que mais um dia se risca no calendário, lá vens tu lembrar-me que 'há um anos isto...', 'há dois anos aquilo', 'há três, quatro, cinco...' e assim sucessivamente até perto da minha infância.

Caro passado,

Disseram-me que as memórias a guardar têm de ser as boas. Disseram-me ainda que o tempo não pára, que anda tudo para a frente, que o futuro é que conta e que temos de aproveitar o presente. A ti não te disseram nada?

Então, caro passado, está tudo trocado entre nós. Porque eu prefiro que vás, tu preferes ficar, e os dias assim não passam.

Sem mais, fica com os meus votos de felicidades, e devolve-me a que puderes.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

O 'meu' Rio de Janeiro

O Rio é calor afrodisíaco. Praia, caipirinhas e cerveja, tudo para vencer as temperaturas dos termómetro. Uma varanda no bairro da Lapa. Prédios com 200 anos de história a pedirem mais uma oportunidade. Festas na praia. É fazer o calçadão às 3h00 de sandálias na mão. São homens suados a bater bola na praia iluminada por candeeiros. Homens a baterem punhetas atrás de quiosques. Mulheres da vida, ou à procura dela. A mulher de negro, quase em trajes menores, a ler à luz de um candeeiro junto à praia. Sanduíches de frango com abacaxi comidas ao balcão peganhento do Cervantes. Restaurantes em antiquários, três andares de velharias, muitas, lindas. É entrar no Copacabana Palace às cinco da manhã. Gente a dormir na rua. Meninos deitados em caixotes. Mulheres tapadas por finos panos de algodão. Conversas sem sentido, sentidas. É o negro colossal e retinto da praia de Ipanema. Um índio de olhos doces e mãos ligeiras a trabalhar couro. É fazer virar cabeças dentro do meu vestido branco. Ter a certeza que não perdi o jeito. Ouvir Vinicius no Canecão. Tristeza não tem fim, felicidade sim. É dizer tudo para exorcizar fantasmas. Porque a dor do amor que teve fim/ Que foi ruim, sei que sim / Outro amor há de apagar. Voltar atrás quando se quer seguir em frente. Apostar uma noite na Pousada de Belmonte com a certeza que vou ganhar. O medo de olhar nos olhos. Ah, não tente explicar/Nem se desculpar/Nem tente esconder/Se vem do coração/Não tem jeito, não/Deixa acontecer. É ver o dia amanhecer na praia da janela do quarto do hotel. São seis pessoas num táxi para quatro. Corpos esmagados, pernas entrelaçadas. São muros cobertos de grafitti. A homenagem à garota de Ipanema, em versão deusa da fertilidade, no Arpoador. Olha, que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela, menina, que vem e que passa. É o barulho do mar. Viagens de elevador. Alucinações conjuntas. A rua de Vinicus em Ipanema, a fazer lembrar a West Broadway. São borboletas. Das que se fumam e das que voam no estômago. Olhares cúmplices. Conversas a meia voz. Samba. Mulatas esculturais e louras oxigenadas. É o fotógrafo da cidade do samba. Árvores frondosas de troncos rasteiros. Bordéis nas esplanadas de Copacabana. Paredes de tijolo e janelas de plástico. São casas simples, com cadeiras na calçada/E na fachada escrito em cima que é um lar/Pela varanda, flores tristes e baldias/Como a alegria que não tem onde encostar. A art déco do Corcovado. O cemitério de S. João Batista ao centro da fotografia. Este é o meu Rio, sugiro que encontrem o vosso.

[Citações de Vinicius de Moraes]

A room with a view*



Copacabana, Rio de Janeiro

*Este post da pseudo série ‘a room with a view’ é publicado fora de prazo, quando já não posso deleitar-me com a vista enquanto escrevo. Mesmo assim, aqui fica.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Inconsequência dos actos

Há qualquer coisa que não está bem. O sol que passa pela janela é dos tímidos, não está para grandes confianças, não aquece, não deixa os corpos em brasa, mas as borboletas insistem. Não deviam ter vindo. Não foi isso que combinamos. Tinham prazo de validade. Dão-se mal em climas frios. Mas vieram. Entraram no avião à socapa, acomodaram-se na última fila da classe executiva, num lugar com vista para a noite do Rio, e eu sem dar por elas. Sei que foram evocadas no Lounge da Varig, sei que dei um salto na poltrona. Ninguém ouviu, ninguém percebeu, foi apenas uma alucinação, mas eu corei e agradeci por estar queimada da praia. Disse obrigada ao sol que trouxe as borboletas, mesmo que elas só tenham chegado de noite, numa varanda da Lapa. Mas nós tínhamos um acordo. Contrato redigido em papel azul de vinte cinco linhas, assinado perante testemunhas, as minhas e as delas. E elas, as borboletas, no papel de segundas outorgantes, comprometeram-se a vagar o andar quando expirasse o prazo. Elas ficavam quando eu regressasse. Ficavam na caixinha verde alface e não se falava mais do assunto. Se quisessem voar, que voassem em Copacabana. Foi isso que combinamos. Agora, o Vinicius diz-me que a hora do sim é o descuido do não. E eu, que - na noite em que o negro mais branco ou o branco mais preto do Brasil me fez chorar no Canecão - quis escrever uma posta de três letras, só lhe posso dar razão. O Não, era isso que eu ia escrever no meu recado de três letras, que se apresentou na luta com toda a frontalidade, baixou a guarda e touché. O Sim, empunhando o florete e cara escondida na máscara quadrangular, até podia levar a taça que não mudava nada. Ficava tudo na mesma se as borboletas tivessem continuado para a cobertura, se instalassem nas espreguiçadeiras da piscina com vista para a praia, quando as deixei no elevador às 4h30 da manhã. Seriam actos inconsequentes. Daqueles que não deixam nódoa, depois de lavados com sabão azul e branco e deixados a branquear ao sol. O mesmo sol que ainda não tinha nascido quando acordei no céu de Lisboa e vi que as borboletas estavam sentadas ao meu lado. Adormecidas. Acordei-as com um beijo. E agora tenho a certeza que há qualquer coisa que não está bem.

As borboletas são tramadas

A gente nem sabe
que males apronta
Fazendo de conta
fingindo esquecer
Que nada renasce
Antes que se acabe
E o sol que desponta
Tem que anoitecer
De nada adianta
Ficar-se de fora
A hora do sim
É o descuido do não

Sei lá, sei lá,
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, sei lá,
Só sei que ela está com a razão


Sei lá... a vida tem sempre razão, Vinicius de Moraes

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Quartos de hotel


Gosto de quartos de hotel. De transformar um sítio completamente impessoal em algo meu. Colocar o gel de banho na banheira, os cremes na bancada, o perfume na mesinha de cabeceira, o livro na almofada, desfazer a mala e pendurar a roupa nos cabides. Acho piada que todos tenham, invariavelmente, um exemplar da Bíblia, se bem que prefiro a versão de uma cadeia espanhola, não me lembro o nome, que deixa na mesa-de-cabeceira dos hóspedes um pequeno livro de contos com o sujestivo nome 'Noche de relatos'. Há quartos que se gostam mais, outros que nos deixam praticamente indiferentes. Não é o caso deste 1073. Quando entrei, e depois de abandonar o portátil e a mala a um canto, abri os cortinados, abri a janela e deixei-me invadir pelo cheiro de Porto Alegre. Já o tinha notado à saída do aeroporto misturado com o CO2 dos tubos de escape, à entrada do hotel, misturado com o cheiro dos grelhados do restaurante em frente, já tinha sentido o aroma característico das noites quentes, aqui temperado por uma ligeira humidade que se cola a pele, que age no meu cérebro como um potente afrodisíaco. E há uma coisa que não me sai da cabeça. Uma pessoa com quem nunca partilhei as noites quentes dos trópicos. Mas é o cheiro que, sem que perceba porque, me traz o gosto pelo seu toque, pelos risos e pelas confidências. Que me traz as memórias do meu tapete vermelho.

A room with a view*

Porto Alegre, Brasil

* Com dedicatória...