quarta-feira, agosto 09, 2006

O [meu] rio

O medo cresce na proporção exacta da subida do mercúrio dos termómetros. Rega-se a relva. Molham-se os primeiros metros do pinhal em volta. Tenta-se, por todos os meios, manter um nível da humidade que impeça que o rastilho se acenda. Que afaste as chamas. Para que não seja preciso deitar aos mãos a cabeça, num pedido desesperado a S. Expedito, a São José e à Nossa Senhora de Fátima. Uma santa trindade formada nas crenças da minha mãe. O fogo ainda não rondou a [minha] Serra este ano. Mas andou lá próximo. O fumo, transportado pelo vento, por cima do monte, infernizou olhos e narizes. Encheu de faúlhas negras a água que se quer do azul do mar. Andou perto da [minha] outra Serra, mesmo ali ao lado, junto ao rio da minha adolescência. Morreram cinco bombeiros que fizeram as manchetes do jornal. Evacuou-se de emergência um parque com milhares de histórias para contar.

Nesse dia pensei com saudade nos salgueiros que caem sobre o rio. Na sombra que acolheu horas de conversa. Discussões acesas. Jogos de cartas. Namoros. Bebedeiras. Cigarros que faziam rir. De dia e de noite. Noites em que víamos o sol nascer por detrás da Serra. Penso no rio que tantas vezes me refrescou. Nas águas que viram nascer um grande amor. A minha serra, esta, tem um nome impronunciável. Daqueles em que as letras repetidas se enrolam a língua.

Volto todos os anos àquele rio. Regresso sempre a um dos sítios onde fui mais feliz. Mesmo sabendo que sentirei um aperto no peito porque há coisas que não voltam nunca. São irrepetíveis as noites dormidas sob o céu estrelado. As cervejas bebidas no jardim infantil. Não voltaremos a fazer ranger as correntes dos baloiços. Não mais seremos ameaçados pelo vizinho da padaria, de caçadeira em punho, enquanto esperávamos pelos primeiros bolos quentes. Salvar-se-ão carros novos, a brilhar, como o Golf que enfiamos numa fossa em construção, porque a cerveja tinha acabado. Nunca mais jogaremos às escondidas com a GNR. Não faremos visitas ao cemitério, que prometia “O Descanso da Vida”, escrito em grandes em letras de ferro forjado por cima do portão. Não voltarei a ouvir o L. cantarolar ‘leva-me contigo’, enquanto atravessava o rio à procura de sossego, longe do olhar vigilante dos meus pais. Não voltarei a apaixonar-me por aqueles olhos negros, com a certeza que aquela paixão de Verão teria um ‘to be continued’ inevitável.

Penso nos sonhos construídos em tardes de Verão. Nos Castanheiros. Nos Carvalhos. Nas Oliveiras. No pomar ali ao lado, onde roubávamos fruta porque era mais fácil do que ir buscá-la à tenda. Penso na tarde em que vi a encosta desfazer-se em cinza perante os nossos olhos incrédulos. Não será a primeira vez que o meu rio ‘arde’. Mas há a certeza que sempre se regenera. Como eu.

9 comentários:

LurdesMartins disse...

Simplesmente... lindo!

Aluada disse...

Num comentário global ao blog ... Gostei muito! ;) Vou começar a frequentar!

Anónimo disse...

Fantástico!! Olha como dizes antes "Gosto"...e não sei porquê cada vez acho mais que és uma grande força da natureza grandes emoções e umas outras quedas mas sempre sempre positiva em relação ao que vem. Lindo!!

Chatterbox disse...

Parece-me que o teu rio tem algo de ‘fénixiano’: incendeia-se quando intui o seu próprio fim, sonhando que renascerá num leito de ervas aromáticas.
PS. Eu acredito que amores impossíveis ou fracassados podem renascer, como por magia...

Carrie disse...

Chatter, amor só se for o que tenho por este Rio e esse nunca morre. O outro amor foi paixão tola de adolescente. Está guardado na caixinha verde alface.
[Já tinha sentido a tua falta... mas principalmente na caixa de comentários do post abaixo...]

Meninas, Obrigada :)

Miss Kin disse...

A vegetação mtas vezes, regenera-se mais facilmente do q nós...

PedroNuno disse...

.. e tu a dares-lhe com o post abaixo! queres mesmo e' incendiar discussoes... :)

Anne Marie disse...

Muito bonito!

Ladybug disse...

Belíssimo texto. Daqueles que nos inundam os olhos e nos deixam o coração apertadinho.