segunda-feira, agosto 28, 2006

Silêncio

E de repente, sem aviso prévio, sem carta registada ou notificação, era de novo só ela. Ela e um silêncio ensurdecedor. A cama demasiado grande. A comida feita para um. Só um prato na mesa. Nunca pensou que fosse doer o dia em que ele batesse com a porta. Nunca pensou que o fim do que há muito não era mais do que nada, provocasse uma ligeira dor na base do pescoço, que alastra pelas costas e se instala nas ‘cruzes’, como dizia a sua avó. Sempre acreditou que no fim o vazio se transformasse em alívio.

Aquilo já não era vida. Era um arrastar de dias, uns atrás dos outros, encarreirados em fila indiana, bom dia, boa noite, como foi o teu dia? Passou-se. Mais chatices no escritório. Perdemos uma conta importante. E tu? O costume. Nada de novo. Dorme bem. Até amanhã., à espera do fim-de-semana que nunca mais chegava. E à sexta à noite, mortinhos para que fosse segunda-feira outra vez. Cansados de olhar um para o outro sem nada para dizer. Ela já nem se queixava da roupa desarrumada. Dos pratos que ele devia pensar que deviam levitar para dentro da máquina. Da atenção que ele não lhe dava. Da televisão sempre a dar futebol. E o sexo? O sexo era bom. Ao início – Quantos anos passaram? –, porque agora já nem isso. Ela ainda comprou lingerie. Uma coisa desconfortável feita em renda. A senhora do C&A disse que seria infalível. A Carmo, a boazona dos recursos humanos, soltou uma gargalhada e disse que agora é que era. Mas ele chegava a cama e apagava a luz. Nem via que, nessas noites, ela se perfumava, deixava o cabelo solto sobre os ombros.

Era uma vida já gasta. Até ao dia em que Freitas do escritório a convidou para sair. E ela, habituada na transparência de um homem que nunca a olhava, sentiu-se o centro do mundo. Ele queria mesmo saber como ela estava. O que ela pensava. O Freitas que, apesar do bigode e a careca que avançava a olhos vistos, até nem era de deitar fora. Primeiro foi um café durante a tarde. Depois encontros quase diários ao cair da noite. Sempre de fugida. Ele estava a espera que o jantar estivesse na mesa a tempo e horas. Que as camisas fossem passadas. Até que um dia, num banco de Belém ela se esqueceu das horas, enquanto o Freitas fazia subir a mão direita por baixo da saia. Lhe tocava onde há muito tempo apenas os seus dedos chegavam.

Era tarde, muito tarde, quando meteu a chave à porta. Ele lá estava, sentado no sofá, uma caixa de pizza no chão da sala. Perguntou-lhe onde estivera. Ela balbuciou uma desculpa, consciente que o sorriso, que não conseguia disfarçar, a traía. Disse que estava cansada. Que precisava de dormir. E fugiu daquele olhar inquisidor. Ele continuou onde estava, comando na mão. Saltando de canal em canal, como quem procura uma resposta. Já na cama, adormeceu em dois tempos, envolta numa ilusão de felicidade que não sabia ser possível. Acordou com o choro dele. Os olhos fixos nos sapatos dela abandonados à porta do quarto. Que foi? Que tens? Estás doente? E ele calado, a olhar para os sapatos. Ela levanta-se, senta-se ao lado dele. Segue-lhe o olhar. Dentro do sapato, esmagado pelo peso da felicidade dela, um preservativo usado. Não houve discussões. Pedidos de desculpa. Apenas o olhar dele vazio. Os gestos mecânicos que tiravam do armário a roupa que enfiava na mala de viagem. Depois, a porta a bater. E por fim, o silêncio.

5 comentários:

Goiaoia disse...

????? no sapato...???? que coisa extraodinária.

Este também é para um Euro?

Dia disse...

AHAHHAHAHAHAH
Eu já apresentei a minha licitação. Quem dá mais?

Vice... disse...

Cara Carrie,

Aqui entre nós, tou doido por conhecer a história do Freitas, não sem antes conseguires explicar porque é que Ele, em vez de lhe ligar a saber por onde andava, preferiu ouvir uma voz a dizer "boa noite, telepizza, fala o Mário, o que é que vai ser?"

Entretanto, 5 euros por este!

andré raposo disse...

Esta doeu!

Anónimo disse...

Epá eu até cheguei a ter pena dele a sério dp daquele tempo todo que nem quis saber chegou á altura em que chorou....Protno pronto coisas de gaijas...Espectáculo!!