O Freitas
[Não ficaria bem com a minha consciência, mesmo correndo o risco de que ele deixe de falar comigo, se não dissesse que a personagem do Freitas, assim como este texto, não é da minha autoria. Foi escrito pelo R., em resposta a um desafio lançado por mim.]
Quem se safou à grande foi o Freitas. Casado, dois filhos, uma mulher fabulosa, ex-miss de Portugal, como ele – e bem, diga-se -, se orgulhava de dizer em qualquer momento, em qualquer lugar. Há quem diga que põe a mulher num altar. Há quem defenda que é mais uma “arma” de auto-promoção.
Acontece que o Freitas não perde uma. Tem olho para a cena. Conhece como ninguém a sensibilidade duma mulher triste. Já na faculdade o Freitas se safava sempre com os arrufos de casais de namorados! E aqui não havia amigos. Aliás no dia em que ele foi apanhado nos balneários do ginásio a "comer" a Beatriz a namorada do seu "melhor" amigo, a resposta foi "É pá Sebastião, nunca nos chateamos por causa duma mulher... não vai ser agora..."!
O Freitas sempre trabalhou num banco. Começou a fazer telemarketing. Vendia tão bem cartões, como seguros automóveis, como um seguro de saúde. Ninguém o incomodava, tinha uma auto-confiança intrigante. Dava a mesma atenção à senhora de 80 anos, ansiosa por conversar ao telefone, como ao mais “duro” dos doutores, que a achar que estava por dentro do mercado, e que já tinha conhecimento do produto, lá acabava por accionar o que o Freitas tinha para lhe vender.
Hoje, Director de Privatte Banking do mesmo banco que o viu crescer, o Freitas continua o mesmo. Dá atenção a toda a gente. Um sorriso mágico para elas. Incomodativo para eles. Gere milhões com o mesmo entusiasmo com que vendia um cartão! Ainda hoje diz, que a lábia é tudo, a técnica vem com a lábia! Não se tem dado mal, e enquanto assim for...
A comprová-lo está a sua mais recente amiga. Começou com um café ocasional. O Freitas nem bebe café. Ia buscar água e encontrou-a mais que atrapalhada por uma questão tão simples como a máquina não ter trocos. “Isto em casa não deve andar nada bem”, pensou ele. Chegou-se por trás, carregou num dos quatro botões opcionais para tirar café, meteu a moeda, e ofereceu-lhe o copo, com um “…de manhã não é fácil para ninguém”.
Um pouco atrapalhada, sem entender como é que ele tinha acertado no café curto com pouco açúcar, lembrou-se de há quanto tempo ninguém lhe oferecia um café com tanta delicadeza... com tanto carinho. Ainda lhe quis dar a moeda que insistia não ser aceite pela máquina, mas o Freitas respondeu-lhe “hoje pago eu, amanhã paga você, pode ser?”.
Claro que pode... foi assim naquele e nos 15 dias que se seguiram, em que a ansiedade dela para que chegassem as 16 horas era tão óbvia, que até a Carmo já lhe tinha enviado uns quantos mails na palhaçada. Logo ela, que para se levantar do lugar quase que tinha que ser arrastada pelas colegas. Há muito que aquele ecrã do portátil - que olhava para ela todos os dias, das 08h às 18h - não via aquele brilho nos olhos, aquele sorriso delirante.
Os primeiros dias foram animados, duma guerra de moedas sempre para saber de quem era a vez de inserir o metal mágico e pedir dois cafés. Começaram a falar de trabalho, de como a festa de Verão tinha sido animada. Ao final da primeira semana já falavam da vida, sem nunca fazerem ‘A Pergunta’. Até porque o anel no dedo de cada um valia mais que mil palavras!
O primeiro almoço aconteceu com a naturalidade de quem já se conhece há cinco anos. As trocas incontroláveis de mensagens colmatavam a vontade de estarem juntos. Um “sim”, foi respondido à mesma velocidade dum “troca-se café das 16h por um almoço no Zé Pinto” – a famosa tasca, especialista em grelhados, testemunha de um sem número de farras entre o Freitas e os amigos, principalmente quando jogava o seu Belenenses.
Ficou delirante com o arroz à Lampião, com o jarro de vinho tinto da casa. Deliciou-se com queijo de cabra, com o casqueiro que lhe foi servido. Deslumbrou-se com o desconforto da cadeira, com o abanar da mesa, repentinamente acertada com o guardanapo que ele tinha do seu lado direito. Impressionante, como se fazem grandes momentos de pequenos nadas, pensava ela. Quando à decoração, não podia ser melhor... ela, benfiquista ferrenha, sócia cativa... estava a almoçar com a foto do Eusébio a espreitar-lhe por trás do ombro. Acabaram a falar da vida, e a pedir o terceiro jarro de vinho.
ÁS 14.30h, quase que por instinto disseram um até já, com um beijo a roçar o canto do lábio. E sim, não houve café às 16h, mas houve lanche às 18... bem longe dali... algures onde o gasóleo acabasse! Que nem relógio suíço lá estavam eles, na garagem da Empresa. O 46 da Carris que a levava todos os dias a casa foi substituído pelo Audi TT.
Ela não falou. Nem o Telemarketing do Freitas a fez abrir a boca. O que ainda se tornou mais constrangedor com o caos no trânsito que os fez estar num “pára-arrranca” durante mais de hora e meia!
Quase a adivinhar o que se ia passar, e já com a noite cerrada de um fim de tarde de Fevereiro, o Freitas estaciona no desconforto do seu silêncio. Ainda lhe tentou perguntar se estava tudo bem, ou se queria que a levasse a casa, mas ela não deixou dizer mais nada, beijou-o como se não houvesse amanhã... mandaram três! Duas de prazer, a terceira de raiva, por os seus dias já não serem assim há dois ou três anos!
Já passava das 21h30, quando ele a quis deixar perto de casa, ela preferiu ficar na mesma paragem de autocarro que lhe acena um “boa tarde” todos os dias. Não houve beijo de até amanhã... apenas um baixar de cabeça por parte da cada um. Ela sai do carro num misto de tristeza e felicidade.
O Freitas segue caminho com um sorriso de orelha a orelha. Vai para casa ter com a esposa. uma mulher fabulosa, ex-miss de Portugal…
Ela, bem quanto a ela... Era tarde, muito tarde, quando meteu a chave à porta...