Deitou-se de barriga para cima no tapete da sala, aquele fofo e que ela adorava o
puxar nas pontas. Era mais ou menos do tamanho dela, de braços abertos. Foi nessa posição que ficou longos minutos, a olhar para o tecto, a perceber os contornos do candeeiro pendurado a direito, a ler de cima para baixo as lombadas dos muitos livros nas várias prateleiras da sala. Viu que as paredes estavam completamente brancas e gostou do contraste que um Monet fazia numa das fachadas. Ela preferia Miró mas aquele tinha-lhe sido oferecido, pelos amigos, no dia em que casou. Já lá iam cinco anos e agora ali estava sozinha, divorciada, já com um novo romance na história da vida que fazia agora dia após dia.
Virou as palmas das mãos para cima como se esperasse que a felicidade andasse por ali, a pairar, e pudesse ser agarrada, assim, sem mais nem menos, desprevenida. Continuou a rodar o pescoço pelas partes altas da casa, apenas iluminadas pela luz de vela acesa, que fazia tremelicar a chama e ainda cheirava bem, a baunilha. Sentia-se só naquela noite, entre o passado que insistia em amarrá-la e o presente que vivia serena. Estava só com ela, naquela noite, porque ele estava do outro lado do rio, cumprindo tarefas de filho pródigo, afastado dela por uma ponte, próximo ao primeiro toque de um telefone que deixava ouvir, da linha de lá, um gosto tanto de ti. Gosto mesmo. E depois fazia piii...
Prendeu os olhos na chama e quase se deixou hipnotizar, à medida que revisitava situações da vida, passada e recente, situações de sofrimento, e outras de doçura. Escolhia as de doçura e tentava arrastá-las, torná-las mais demoradas, estendê-las no tempo. Vinha sempre o passado interromper, nestes dias em que se deitava no tapete. Mas também lhe acontecia deitada na cama ou no sofá. Era indiferente: aquele sorriso, aquele abraço, aquele adeus, aquela esperança, aquele choro, o desespero... Tudo lhe vinha à memória para competir com a tranquilidade de um beijo nos olhos, de uma carícia nas mãos, de um afagar no cabelo.
Fechou os olhos com força e concetrou-se nesses momentos. Imaginou-o, redondo, ao lado dela, bigode aparado e barba tão bem feita que parecia ter pele de bebé. Imaginou-o com a camisa para fora das calças de ganga de marca - que não dispensava -e de mangas arregaçadas porque, para ele, estava sempre calor. Deu-lhe a mão nos sonhos que então deixava chegar até ela, e apertou-o com força. Sentiu-se confiante, mesmo quando percebeu que apenas tinha, entre os dedos, os fios grossos do tapete castanho.
Deixou-se embalar pelos pensamentos que ele lhe trazia. Sabia que pensava nela, estivesse onde estivesse, que pensava nela. Abriu os olhos devagar e lá estava a chama a fumegar. A vela parecia não gastar-se, naquela noite e a noite parecia não terminar, para aquela luz. Então sorriu.
Puxou uma manta num arrepio de frio e ali ficou, à espera que a luz acabasse. Via pela janela uma lua em quarto minguante, que desapareceria com os dias que passam. Ela gostava da lua. Mas preferi-a cheia, brilhante, segura num céu que de negro se fazia azul, com as estrelas e polvilhá-lo, vistas daquela casa tão pouco iluminada. Pensou que o abraçava e que o beijava na testa. Disse-lhe boa noite e deitou-se em posição fetal.
Ainda rezou pelos dois. Por eles os dois.
Esqueceu-se dela. E adormeceu.